sábado, 4 de março de 2017



METODOLOGIA PARA ANÁLISE DO TEXTO POÉTICO


1º   LEITURA


            É a base de toda a análise.
            Deve ler-se o texto tantas vezes quantas as necessárias até se ter compreendido total ou suficientemente o seu sentido.
            Para isso, começa-se por:

            A) Uma leitura compreensiva, consultando o dicionário de modo a que não fique nenhuma palavra, parte ou texto no seu conjunto por entender.
            É possível que, neste momento, ainda restem alusões históricas, mitológicas, culturais ou metáforas por esclarecer. Para dar resposta a estas dúvidas, necessitaremos de outros instrumentos de trabalho, além da nossa sensibilidade.

            B) Uma leitura estética. Consiste em nos situarmos numa atitude emotiva, não racional, deixando-nos penetrar pela beleza do texto.
            Tentaremos, então, precisar algumas questões: "que me atrai ou não neste poema?"; "que me diz este texto?"
            A resposta a estas perguntas determinará a orientação da análise que, como se vê, é sempre subjectiva.
            Haverá tantas análises de um mesmo texto, quantos os indivíduos a analisá-lo.


NOTA: Estes dois tipos de leitura são complementares porque a sensibilidade sem informação produz apenas um grito admirativo; a informação sem sensibilidade, uma análise de dados vazios, sem interesse.


2º   LOCALIZAÇÃO

            É uma introdução em que se situa o texto na obra a que pertence, na época literária e, ao mesmo tempo, alerta o leitor para a sua singularidade (interesse estético, ideológico, etc.)


3º   IDENTIFICAÇÃO DO TEMA

            O tema é o núcleo significativo do texto. É a ideia resumida do que o poema diz, da intenção do autor.
            O texto lírico expressa, quase sempre, um sentimento ou uma sensação. Por isso, a ideia fundamental do tema pode expressar-se através de um substantivo abstracto, rodeado de complementos.


4º   IDENTIFICAÇÃO DA ESTRUTURA

            O autor, ao escrever, vai compondo, colocando as diferentes partes de um todo - o texto - numa determinada ordem.
            Identificar a estrutura é descobrir de que partes está composto o texto.
            Todas as partes estão relacionadas entre si porque se o autor quis expressar um tema, é obrigatório que todas as partes contribuam para expressar esse tema e, portanto, que estejam relacionadas entre si.
            As partes do texto caracterizam-se e distinguem-se porque o tema adquire, em cada uma delas, modulações mais ou menos diferentes.
            Pode não haver partes, nem ordem. A desordem pode ser a estrutura do texto.


5º   ANÁLISE

            Há uma estreita relação entre tema e forma porque, de todos os meios linguísticos ao dispor do escritor, este escolheu apenas os que lhe pareceram os mais adequados para expressar melhor o tema.
            O tema está, portanto, presente nos traços formais do texto.
            A análise consistirá em ir comprovando, linha a linha ou verso a verso, como o tema vai determinando os traços formais do texto e justificar-se-á cada traço formal como uma exigência do tema.


6º   CONCLUSÃO


            Até agora, as nossas observações, embora guiadas por algo que as unia - o tema -, são bastantes dispersas. Dá a sensação de que não se captou a essência e o significado do texto.
            A conclusão fará o balanço dessas observações, reduzindo-as às suas linhas gerais, servindo, também, para dar a impressão pessoal do leitor.
            Na conclusão deve-se confrontar o tema com a forma no seu conjunto e acabar com uma opinião pessoal sincera sobre o texto, o que nunca será feito com frases do tipo: "É um texto muito bonito..."; "Tem muita musicalidade..."; "Descreve muito bem..."; "Parece que se está a ver...".



Exemplos de análise de texto:


Lágrima de Preta

                                               Encontrei uma preta
                                               que estava a chorar,
                                               pedi-lhe uma lágrima
                                               para a analisar.

                                               Recolhi a lágrima
                                               com todo o cuidado
                                               num tubo de ensaio
                                               bem esterilizado.

                                               Olhei-a de um lado,
                                               do outro e de frente:
                                                tinha um ar de gota
                                               muito transparente.

                                               Mandei vir os ácidos,
                                               as bases e os sais,
                                               as drogas usadas
                                               em casos que tais.

                                               Ensaiei a frio,
                                               experimentei a lume,
                                               de todas as vezes
                                               deu-me o que é costume:

                                               Nem sinais de negro,
                                               nem vestígios de ódio.
                                               água (quase tudo)
                                               e cloreto de sódio.

                                                                       António Gedeão



COMENTÁRIO

[Introdução]

            António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, publica, em 1964, Poesias Completas onde se insere Lágrima de Preta.
            Este poema condensa, de forma bastante original, certos aspectos que são recorrentes na obra deste autor: uma forma simples, quase popular; um olhar neo-realista sobre o sofrimento daqueles que são humilhados e explorados; uma linguagem denotativa da sua formação científica e, por fim, um tom didáctico e pedagógico a revelar a sua experiência como professor.


[Estrutura externa]

            Este poema está organizado em quadras de redondilha menor, com o esquema rimático abcb, o que o aproxima da poesia popular.


[Estrutura interna]

            A sua estrutura é contínua, formada pelo encadeamento complementar das diferentes partes, que coincidem com cada uma das estrofes.

[Tema]

            O tema da condenação do racismo está, por isso, presente desde o 1º verso, numa progressão, de etapa a etapa do método científico, aplicado à lágrima de preta.


[Análise]

            Na 1ª estrofe, são-nos dados os 3 elementos que vão estar presentes ao longo do poema:
            - o eu poético ("encontrei", "pedi") - sujeito da acção
            - a lágrima - objecto da acção
            - analisar - acção a desenvolver

            Há, portanto, uma sintaxe mínima da transmissão de uma mensagem: sujeito, verbo, objecto.
            O sujeito da acção surge como um indivíduo sem intenção prévia em relação ao objecto de análise: ele não procura uma preta, ele encontra casualmente ("encontrei") uma preta; ele não se interessa pelas razões que motivaram o choro, constatando, apenas, a sua duração através de uma perifrátrica (“estava a chorar”). Assume, assim, uma frieza objectiva.
            Temos, então, o sujeito da acção com intuitos exclusivamente científicos, que concentra a atenção sobre o objecto a analisar.
            Mas, a análise científica tem sempre um propósito: a confirmação de uma hipótese, neste caso, a relação entre dois factos observados: a cor da pele da mulher, isto é, a aparência e uma lágrima - a essência.
            Esta hipótese está implícita, de forma extremamente económica, no termo preta.
            Preta, metonímia onde a cor se tornou denominação, revela uma linguagem depreciativa, enraizada no senso comum. Ao utilizá-la, o poeta elabora a sua hipótese: aquela preta, que representa todas as demais (o indefinido “uma” está ao serviço da generalização), será, realmente, um ser diferente dos que não são pretos? Haverá razões para a marginalização social a que é submetida?
            O sujeito poético, agora perfeitamente identificado como cientista, vai proceder, através do método experimental, à verificação da hipótese formulada.
            Assim, nas quatro estrofes seguintes, são referidas as diferentes etapas deste processo:
           
            Na 2ª estrofe, a tónica é posta no esmero científico que orientará toda a experimentação, estando os adjectivos todo e esterilizado, assim como o advérbio bem ao serviço da intensificação desta ideia.

            Na 3ª estrofe, o poeta-cientista observa ("olhei-a") activamente ("de um lado / do outro e de frente") o seu objecto de análise, tirando desse exame conclusões ainda empíricas porque se baseiam na observação das aparências ("tinha um ar").
           
            A 4ª estrofe marca a etapa decisiva para a verificação da hipótese: a experimentação laboratorial.
            Por outro lado, os dois últimos versos dão a entender que experiências idênticas já haviam sido realizadas.
            Deduz-se, então, que a diferença, agora, está no facto de se tratar de uma lágrima de preta.

            Na 5ª estrofe, os dois primeiros versos sublinham o carácter exaustivo desta análise, quer pelo paralelismo sintáctico, quer pela explicitação dos modos diversificados e mesmo opostos ("a frio / ao lume") através dos quais a experiência foi levada a cabo.
            Assim, não haverá razão para dúvidas sobre as conclusões que, como os dois últimos versos nos antecipam, são perfeitamente iguais às das experiências anteriores.

            A última estrofe constitui a formulação dessas conclusões que aparecem divididas em duas partes, com o ponto final a separá-las.
            Os dois primeiros versos negam rotundamente, pela repetição da coordenativa nem e pelo paralelismo sintáctico, a dúvida levantada inicialmente - a de os pretos serem, por essência, diferentes dos demais.
            Agora, como cientista, afirma que não existem razões para, socialmente, fazer distinção de raças (“nem sinais de negro”). Do mesmo modo, o choro não contém o sentimento mais reservado contra quem a faz sofrer (“nem sinais de ódio”).
            Nos dois últimos versos corrobora a declaração feita anteriormente, expondo os resultados obtidos, de forma minuciosa ("quase tudo") e numa linguagem científica ("cloreto de sódio" em vez de sal).
            A ausência de formas verbais nesta quadra sugere a universalidade e perenidade destas conclusões.


[Conclusão]

            Estamos, aparentemente, perante um texto de tipo discursivo, de mero relato objectivo de um acontecimento, já que frases de tipo declarativo, substantivos e verbos predominam como categorias verbais.
            A natureza semântica dos verbos e substantivos apoiam o carácter científico do acontecimento relatado.
            A total ausência de termos rebuscados ou de artifícios poéticos tornam esta composição muito próxima da linguagem quotidiana, portanto, acessível a qualquer um.
            No entanto, regista-se uma preocupação eminentemente filosófica no assunto tratado - procura da essência de um fenómeno -, e de intervenção social, ao mostrar que preconceitos rácicos radicados na nossa sociedade não têm explicação, nem científica, nem humana.
            Todos estes aspectos juntamente com as características da métrica escolhida, conformam uma poesia de cariz didáctico, comprometida socialmente.



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 A UM POETA

                                               Surge et ambula!

                                    Tu que dormes, espírito sereno,
                                    Posto à sombra dos cedros seculares,
                                    Como um levita à sombra dos altares,
                                    Longe da luta e do fragor terreno,

                                    Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
                                    Afugentou as larvas tumulares...
                                    Para surgir do seio desses mares,
                                    Um mundo novo espera só um aceno...

                                    Escuta! é a grande voz das multidões!
                                    São teus irmãos, que se erguem! são canções...
                                    Mas de guerra... e são vozes de rebate!

                                    Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
                                    E dos raios de luz do sonho puro,
                                    Sonhador, faze espada de combate!

                                                                                   Antero de Quental




COMENTÁRIO

            Antero de Quental, autor das "Odes Modernas", é quem desencadeia as irritações e tempestades do meio literário português do seu tempo, conhecidas por "Questão Coimbrã". Com efeito, Antero, ainda estudante de Coimbra, rebela-se contra a poesia oficial de Castilho e seus protegidos, e proclama a independência e combatividade dos poetas. Este acto de rebeldia surge como consequência, não só do seu temperamento e desejo de justiça, mas duma forte reacção ao Romantismo que, entre nós, degenerara num Ultra-romantismo vazio e convencional.
            Este soneto, publicado na 3ª parte dos "Sonetos Completos", traduz o carácter combativo e revolucionário que o poeta deveria assumir, o que já havia dado origem às "Odes Modernas", onde Antero, numa nota da 1ª edição, afirma: "a Poesia moderna é a voz da Revolução".


            A estrutura deste soneto é contínua, formada por duas partes sintáctica e semanticamente complementares: na 1ª estrofe, descreve-se a atitude do poeta perante o mundo; nas estrofes seguintes, essa descrição desaparece para dar lugar a uma série de apelos dirigidos ao Tu do início do poema.
            Esta estrutura é progressiva, já que estes apelos, dados pelos imperativos, estão organizados de forma crescente de intensidade, redobrando-se na última estrofe.

            O poema começa com o pronome tu apontando-nos de imediato para uma situação de comunicação directa, própria do estilo coloquial.
            A oração relativa restritiva e a sinédoque que se lhe seguem desfazem a indefinição referida no título. Temos, então, não um poeta qualquer, mas aquele que dorme, isto é, aquele que é só espírito porque está morto há muito ("à sombra dos cedros seculares"). E está morto porque alheio, arredado da vida ("longe da luta e do fragor terreno"). O particípio passado "posto" e o adjectivo "sereno" sublinham esta passividade e alheamento.
            A comparação entre o poeta e um sacerdote desvenda-nos a metáfora do 2º verso: o sacerdote "à sombra dos altares" dá lugar a um ritual, sempre o mesmo, de todos já sabido; o poeta, "à sombra dos cedros seculares", oficia o ritual de uma mesma poesia: velha, por todos já conhecida.
            As aliterações em / / dos dois primeiros versos e em / l / dos dois últimos delimitam os dois termos da comparação.
            A rima interpolada entre dois adjectivos que, pelo contexto semântico se opõem, e o quiasmo existente entre os dois últimos termos dos 1º e 4º versos, realçam e ampliam o divórcio entre o poeta de que se fala e a vida real.
            A rima emparelhada sublinha a igualdade de posições entre o poeta e o sacerdote, dada pela comparação entre as duas metáforas em que a repetição do complemento de lugar "à sombra" expressa uma atitude de refúgio na passividade do ritual.

            A 2º parte é iniciada pelo imperativo "Acorda!" que é, por um lado, a articulação sintáctica com a 1º estrofe e, por outro, o começo de um estilo mais emotivo e apelativo que caracteriza o resto do poema. Segue-se-lhe uma justificação ("é tempo!") que, por sua vez, é também explicada: o sol, pela sua posição no céu, indica o momento do dia em que as sombras desaparecem e tudo se torna mais nítido e brilhante.
            O advérbio de tempo "já" reforça e actualiza este momento em que já não há condições para que as larvas tumulares sobrevivam porque são o produto da decomposição dos corpos mortos e, portanto, imagem da poesia velha, caduca, criada por aquele poeta.
            No verso 7, o termo "seio" revela-nos, no seu sentido etimológico, a profundidade dos mares que o deítico "esses" indica serem a luta e o fragor terrenos.
            Para que dessa profundeza nasça um mundo novo, o poeta terá apenas que dar o seu "aceno", o seu sinal que será uma poesia nova, diferente.


            O 1º terceto funciona como nexo do último verso da 1ª parte. É um novo apelo ao poeta que, depois de ter acordado, deve ouvir com atenção ("Escuta!") o que as multidões em uníssono clamam ("a grande voz").
            No 2º verso desta estrofe, definem-se os nomes presentes no verso anterior: as multidões são irmãos do poeta; a voz são canções.
            No verso seguinte, a adversativa mas explicita qualquer ideia que possa ter surgido com as reticências: as canções são de alerta e de guerra, isto é, de revolução.
            Na última estrofe, temos a conclusão, desaparecendo, por isso, todas as reticências.
            Depois de ter acordado por ser pleno dia e de ter escutado o clamor das multidões, o poeta deve erguer-se, tal como os seus irmãos, transformado já em "soldado do Futuro". Soldado, porque integrado nas multidões que se preparam para a revolução; do Futuro, porque se opõe ao poeta do presente que dorme, longe desta luta que deflagra com canções de uma nova poesia.
            O termo Futuro surge como símbolo do mundo novo. O poeta ("sonhador") terá como missão o combate, feito de sonho e desinteresse ("sonho puro"), através da sua poesia ("espada") que será a porta-voz, a luz da revolução anunciada.

            Temos, portanto, um poema de empenho social e de cariz revolucionário.
            Antero de Quental assume-se como o profeta, tal como o da Bíblia que diz "Surge et ambula!", que anuncia um mundo novo, do qual o poeta deve ser o arauto e aquele que indica o caminho a seguir pelas multidões.
                                   

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O Palácio da Ventura


Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d' ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!





Comentário


            Antero de Quental é o poeta dos ideais de justiça e fraternidade, o que o leva a liderar as vozes que se levantaram contra o Ultra-romantismo vazio e convencional. Ficaram conhecidas as suas intervenções na Questão Coimbrã e, mais tarde, na organização das Conferências do Casino onde proclamou a independência e combatividade dos poetas.
            Este poema faz parte de um conjunto reunido num volume intitulado “Sonetos Completos”.
            O tema deste soneto é o da busca da felicidade que não existe.
            O sujeito poético identifica-se com um cavaleiro andante que percorre um espaço à procura da Ventura.
            Começa por dizer que se trata de um sonho, o que nos remete para o mundo dos ideais. Além disso, o vocabulário escolhido (cavaleiro andante, palácio encantado, espada, armadura) têm conotações com as novelas de cavalaria, onde a aventura, a busca de um ideal eram o assunto principal.
            O percurso deste cavaleiro andante passa por quatro momentos: primeiro, o do entusiasmo (V. 1-4); segundo, o do desalento (V. 5-6-); terceiro, o do renascimento da esperança (V. 7-12); quarto, o da decepção final.
            Podemos, então, dizer que o espaço percorrido não é físico, mas sim psicológico, sendo todo o poema uma metáfora de um processo psicológico vivido pelo sujeito poético.
            As conjunções adversativas Mas e a conjunção e que, neste contexto, adquire o mesmo valor adversativo, marcam os diferentes momentos do poema.
            Da mesma forma, a passagem de estrofe para estrofe cria a ilusão do tempo que passa.
            As antíteses “palácio ... fulgurante” / “escuridão” e “com fragor” / “silêncio” evidenciam as tendências de sentido oposto na poesia de Antero: o luminoso versus nocturno; a busca da felicidade versus pessimismo, desilusão.
            A pontuação – exclamações e reticências – denotam os dois sentimentos dominantes neste soneto: por um lado, o entusiasmo, a esperança e, por outro, o desalento e a decepção.
            É em decepção que termina o último verso com os substantivos “silêncio e escuridão”, resumidos no pronome indefinido “nada” que, por sua vez, é reforçado com o advérbio de quantidade “mais”.

            Temos, pois, um soneto onde se reflecte o pessimismo a que chegou o autor, depois do seu entusiasmo por construir um mundo novo.


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CRISTALIZAÇÕES


                                    Faz frio. Mas depois duns dias de aguaceiros,
                                    Vibra uma imensa claridade crua.
                                    De cócoras, em linha, os calceteiros,
                                    Com lentidão, terrosos e grosseiros,
                                    Calçam de lado a lado a longa rua.

                                    Como as elevações secaram do relento,
                                    E o descoberto sol abafa e cria!
                                    A frialdade exige o movimento;
                                    E as poças de água, como em chão vidrento,
                                    Refletem a molhada casaria.

                                    Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
                                    Disseminadas, gritam as peixeiras;
                                    Luzem, aquecem na manhã bonita,
                                    Uns barracões de gente pobrezita
                                    E uns quintalórios velhos com parreiras.

                                    Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
                                    Tomam por outra parte os viandantes;
                                    E o ferro e a pedra - que união sonora! -
                                    Retinem alto pelo espaço fora,
                                    Com choques rijos, ásperos, cantantes.

                                    Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços
                                    Cuja coluna nunca se endireita,
                                    Partem penedos. Cruzam-se estilhaços.
                                    Pesam enormemente os grossos maços,
                                    Com que outros batem a calçada feita

                                    A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
                                    Que espessos forros! Numa das regueiras
                                    Acamam-se as japonas, os coletes;
                                    E eles descalçam com picaretes,
                                    Que ferem lume sobre pederneiras.

                                    E nesse rude mês, que não consente as flores,
                                    Fundeiam, como esquadra em fria paz,
                                    As árvores despidas. Sóbrias cores!
                                    Mastros, enxárcias, vergas. Valadores
                                    Atiram terra com as largas pás.

                                    Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -
                                    Carros de mão, que chiam carregados,
                                    Conduzem saibros, vagarosamente;
                                    Vê-se a cidade, mercantil, contente:
                                    Madeiras, águas, multidões, telhados!

                                    Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
                                    Em arco, sem as nuvens flutuantes,
                                    O céu renova a tinta corredia;
                                    E os charcos brilham tanto, que eu diria
                                    Ter ante mim lagoas de brilhantes!

                                    E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
                                    Eu tudo encontro alegremente exacto.
                                    Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
                                    E tangem-me, excitados, sacudidos,
                                    O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

                                    Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
                                    De tão lavada e igual temperatura!
                                    Os ares, o caminho, a luz reagem;
                                    Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
                                    Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

                                    Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
                                    Dois assobiam, altas as marretas
                                    Possantes, grossas, temperadas de aço;
                                    E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
                                    E manso, tira o nível das valetas.

                                    Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
                                    Que vida tão custosa! Que diabo!
                                    E os cavadores pousam as enxadas,
                                    E cospem nas calosas mãos gretadas,
                                    Para que não lhes escorregue o cabo.

                                    Povo! No pano cru rasgado das camisas
                                    Uma bandeira penso que transluz!
                                    Com ela sofres, bebes, agonizas:
                                    Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
                                    E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

                                    De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
                                    Surge um perfil direito que se aguça;
                                    E ar matinal de quem saiu da toca,
                                    Uma figura fina, desemboca,
                                    Toda abafada num casaco à russa.

                                    Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
                                    E a quem, à noite na plateia, atraio
                                    Os olhos lisos como polimento!
                                    Com seu rostinho estreito, friorento,
                                    Caminha agora para o seu ensaio.

                                    E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
                                    Como lajões. Os bons trabalhadores!
                                    Os filhos das lezírias, dos montados:
                                    Os das planícies, altos, aprumados;
                                    Os das montanhas, baixos, trepadores!

                                    Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
                                    Furtiva a tiritar em suas peles,
                                    Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
                                    Neste Dezembro enérgico, sucinto,
                                    E nestes sítios suburbanos, reles!

                                    Como animais comuns, que uma picada esquente,
                                    Eles, bovinos, másculos, ossudos,
                                    Encaram-na sanguínea, brutamente:
                                    E ela vacila, hesita, impaciente
                                    Sobre as botinhas de tacões agudos.

                                    Porém, desempenhando o seu papel na peça,
                                    Sem que inda o público a passagem abra,
                                    O demonico arrisca-se, atravessa
                                    Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
                                    Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

                                                                                               Cesário Verde

                                   


COMENTÁRIO


            Cesário Verde escreveu a respeito deste poema: "São uns versos agudos, gelados, que o inverno passado me ajudou a construir, lembram um poliedro de cristal e não sugerem, por isso, quase nenhuma emoção psicológica e íntima".

            Na realidade, esta composição apresenta várias cenas justapostas tal como as faces de um poliedro.
            Podemos encontrar, no entanto, três assuntos predominantes: o tempo meteorológico, os calceteiros e a actriz, estando os dois primeiros presentes do princípio ao fim do poema.

            A estrutura é, por isso, contínua porque formada pelo encadeamento das diversas cenas ou partes semânticas, e progressiva por se verificar um desenvolvimento temático crescente quanto à quantidade de informação.

            Como já se disse, o tempo meteorológico e os calceteiros são os dois elementos que acompanham o desenvolvimento temático do princípio ao fim. É com eles que se inicia o poema e por isso vamos analisar com mais detalhe a 1ª estrofe.

            "Faz frio" é uma afirmação curta, incisiva, iniciada por um verbo no presente do indicativo que nos situa, de imediato, no tempo cronológico e meteorológico do poeta.
            A adversativa que se segue põe em contraste o dia presente com os dias chuvosos que o precederam, cujo rigor e persistência são sublinhados com o emprego de sibilantes e dentais.
            O 2º verso traz, ainda, um eco do tempo passado, no seu recorte fonético, através da sibilante do adjectivo imensa que, por contraste, sublinha as duas ideias que agora avultam: a vibração do ar, dada pelo valor semântico do verbo vibrar, colocado no início do verso, e a sua concretização fonética na aliteração das vibrantes "Vibra (...) claridade crua"; e a crueza do ar, transmitida explicitamente no adjectivo crua e, implicitamente, na aliteração das guturais em "claridade  crua".
            É realçado, deste modo, o dia frio, mas com ar limpo pelas chuvas caídas e um sol de inverno que, na sua "claridade crua", deixa ver com nitidez todos os pormenores da realidade, estimulando a observação.
            A primeira coisa que prende a atenção do poeta são os calceteiros, quer pela sua posição ("de cócoras"), quer pela ocupação do espaço visual ("em linha, "de lado a lado, da "longa rua").

            Ainda, em apontamentos breves, repara em algumas características destes elementos humanos ("terrosos e grosseiros") e no modo como a acção por eles realizada - "calçam" - é levada a cabo: "com lentidão".
            De notar, nestes três últimos versos, o predomínio de sons líquidos, guturais e sibilantes, podendo-se formar dois grupos: por uma parte, "em linha", com lentidão", "de lado a lado a longa" e, por outra, "de cócoras", "os calceteiros" "terrosos e grosseiros" "calçam".
            Estes dois grupos de sintagmas cruzam-se em linhas sinuosas, donde se destacam três impressões: a lentidão, a posição e a rudeza dos calceteiros que têm a aliteração dos sons laterais, sibilantes e guturais, respectivamente, a sublinhar aqueles três aspectos.

            As referências ao tempo meteorológico são iterativas.
            A 1ª estrofe põe em evidência dois aspectos deste elemento: o frio e a claridade, que podem encontrar-se perfeitamente discriminados se agruparmos as expressões "Sol descoberto", "manhã bonita" e "bom tempo", por um lado, e "rude mês", "frio" e "friagem", por outro, sendo "Dezembro enérgico", precedido do deítico este, a expressão que sintetiza e explicita todas as referências anteriores, assim como a sua função no poema: de observação (1ª estrofe); de movimento (2ª estrofe) e de estímulo dos sentidos (10ª e 11ª estrofes).

            Estas três funções realizam-se permanentemente ao longo do poema: é através do olhar que o poeta observa a realidade que o rodeia, dando-nos pormenores como o tipo de ferramentas e vestuário dos calceteiros ou a característica das suas barbas (estrofes 5 e 6); a maneira de andar das peixeiras e da actriz ou o tipo de calçado desta última.

            O sentido da audição está também ao serviço desta observação, transmitindo-nos um mundo mais real porque também constituído de sons: é o grito das peixeiras, o som produzido pelo trabalho dos calceteiros e o assobio de dois deles.

            O movimento exigido pela "frialdade" está presente em todos os elementos que o olhar, ora pormenorizado, ora abrangente do poeta pode captar: os calceteiros calçam, partem, batem, descalçam, tiram o nível, cospem, encaram a actriz, assobiam; as peixeiras dão aos rins; a actriz surge, desemboca, caminha, vacila, hesita, arrisca-se, atravessa; e o próprio poeta caminha em direcção aos calceteiros, tendo em frente a barroca donde sai a actrizita.

            Esta deslocação do poeta no espaço observado, só aparece explícita na estrofe 12: "um pára enquanto eu passo".

            Mas já na estrofe 6, nos apercebemos da sua aproximação em relação aos calceteiros porque só assim se explica que ele consiga distinguir desde o tipo de tecido dos barretes à espessura dos forros, o que, por sua vez, confirma o aspecto geral ("terrosos e grosseiros") já apercebido na 1ª estrofe quando o poeta tem uma vista global da rua e das suas personagens ("calçam de lado a lado a longa rua").
            Por seu lado, a actriz caminha na direcção oposta, cruzando-se, primeiro, com o poeta e, depois, com os calceteiros: primeiro, o poeta vê-a surgir ao longe "ao cimo da barroca" e desembocar na rua. Na estrofe 18, cruzam-se, visto o poeta poder reparar em pormenores como o queixo ou o "tiritar" de frio da actriz.

            É de notar o contraste entre o movimento rápido da actriz ("atravessa", "depressa") ou o das peixeiras ("que a marcha agita") e o movimento lento dos calceteiros ("com lentidão", "morosos", "com um ar ralaço e manso", "bovinos").

            É sobre o sujeito poético que o tempo meteorológico exerce a sua acção de estímulo dos sentidos (estrofes 10 e 11) e o leva para o campo da fantasia: "sabe-me a campo, a lenha, a agricultura", contrastando com a realidade presente: " E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos". A concessiva marca esta diferença e, ao mesmo tempo, o abandono do poeta aos seus próprios sentidos.

            Esta passagem da realidade para o sonho e fantasia já se havia verificado nas estrofes 7,8 e 9 onde "o frio - o grande agente!" leva o poeta a evocar, espontaneamente, imagens de domínios diferentes das da realidade presente. Assim, às "árvores despidas" sobrepõem-se os navios fundeados; à lentidão e ao chiar dos carros de mão sobrepõe-se uma cidade nórdica caracterizada pela azáfama; e aos charcos do chão sobrepõem-se "lagoas de brilhantes".

            A partir da estrofe 12, momento em que o poeta passa junto dos calceteiros, a realidade captada objectivamente através dos sentidos deixa de ser ponto de partida para a evasão no mundo da fantasia para passar a ser exclusivamente objecto de reflexão e comentário, isto é, comportamentos puramente racionais e intelectuais.

            Para melhor se compreender a relação entre a atitude do eu poético e a situação em cena das personagens principais, observe-se o esquema em anexo.
            Verificamos, então, que os calceteiros, além de estarem presentes ao longo de todo o poema, são o elemento menos dinâmico desta movimentação, quer por serem o fulcro da paisagem, quer pela lentidão dos seus gestos.

            É na estrofe 12 que o poeta se cruza com os calceteiros, confirmando o seu aspecto rude ("mal encarado e negro") e a lentidão dos movimentos ("com um ar ralaço e manso"). De realçar que estes dois aspectos, já referidos, são atribuídos às circunstâncias do trabalho. Eles são "morosos" porque as ferramentas de trabalho, os maços, "pesam enormemente"; "a coluna nunca se endireita" porque o calceteiro passa a maior parte do tempo dobrado sobre si, partindo penedos, batendo a "calçada feita"; são "duros, baços" porque o trabalho é rude, desde os instrumentos de trabalho à matéria que transformam - os penedos.

            Esta constatação leva o poeta a exercer juízos de valor sobre a realidade que tem, agora, tão perto de si. Deste modo, nas duas estrofes seguintes, sucedem-se as exclamações onde predominam a comparação, a imagem e a metáfora ao serviço da denúncia do sofrimento do "Povo!", e da consequente revolta experimentada pelo poeta.  

            Finalmente, aparece a actriz que vai ser pintada alternadamente com os calceteiros, donde resulta um contraste entre o aspecto destas duas personagens: de um lado, os "Homens de carga", "as bestas", e do outro, "uma figura fina" de "queixo hostil, distinto"; de um lado avultam "os dorsos, os costados como lajões", do outro, "um perfil direito que se aguça"; e ainda "bovinos, másculos, ossudos" eles e "furtiva" , "impaciente", demonico" ela.


            Temos, então, a lentidão, a posição e a rudeza dos calceteiros a opor-se ao andar rápido, ar esguio e aspecto fino da actriz. Depois de ter feito uma primeira descrição da actriz, o poeta, na estrofe 16, mostra o seu espanto por a encontrar, de dia e naquele sítio, já que é de noite e no teatro, portanto no centro da cidade, que ela se deixa ver e até atrair.

            Na estrofe 18, a expressão "Espanta-me" sintetiza estes pensamentos, agora, sobre a actrizita e não a actriz. Este diminutivo revela, ao mesmo tempo, carinho e pena. Carinho que já havia demonstrado "à noite na plateia" e pena por a encontrar num quadro adverso, isto é, "Neste Dezembro enérgico, sucinto / E nestes sítios suburbanos, reles!", que contrastam com o interior aquecido de um teatro no centro da cidade.

            Por seu lado, o facto de a actriz se deixar atrair, embora fingidamente ("os olhos lisos como polimento"), contraria a sua atitude presente ("Furtiva" de "queixo hostil, ddistinto"), o que a adversativa Mas, no início da estrofe, faz realçar.

            Outra adversativa aparece no início da última estrofe, agora a marcar a representação que a actriz continua a fazer mesmo fora do palco, onde as atitudes são outras por a situação ser outra também. Isto é, tanto o seu aspecto como as suas atitudes são uma máscara que a actriz nunca tira.

            Quanto aos calceteiros, "filhos das lezírias, dos montados" caracterizados pelo seu aspecto altivo ("aprumados") e enérgico ("trepadores") deixaram de ser "os bons trabalhadores" para serem "bestas de carga" sobre os quais o tempo atmosférico não exerce influência nenhuma. O aparecimento da actriz acicata-lhes os impulsos sexuais, mas continuando ao nível da animalidade, sem recobrar as qualidades antigas.


            Podemos, portanto, concluir que a cidade, nos seus dois espaços característicos - o centro e o subúrbio - é habitada por gente trabalhadora de dois tipos: a que põe a máscara e a que perdeu as suas qualidades nobres.
            E esta cidade tem um nome - Lisboa - diferente das cidades do Norte (estrofe 8).

            Encontramos, neste poema, elementos próprios da narrativa, através dos quais o poeta tenta transmitir a realidade e a sua objectividade. São eles as personagens e a acção que têm como pólos de unidade o tempo atmosférico e cronológico ("Neste Dezembro enérgico, sucinto") e o espaço ("Nestes sítios suburbanos, reles").

            De realçar a repetição do deítico estes a dar o aqui e agora do momento vivido pelo poeta e que ficou fixado de forma breve, resumida ("sucinto") nestas Cristalizações.

            Ao serviço da objectividade e da realidade crua que nos descreve está ainda o concretismo do vocabulário e as sensações ao serviço da apreensão do que o rodeia. Esta realidade assim apercebida é, por vezes, interceptada pelo sonho e pela fantasia e, por fim, pelo raciocínio e juízos de valor.
            Podemos considerar este um processo inovador na nossa literatura que, mais tarde, foi aprofundado e teorizado, sobretudo, por Fernando Pessoa - que, não nos esqueçamos, considerava Cesário Verde seu mestre -, nos -ismos nossos conhecidos: interseccionismo, sensacionismo e, até, futurismo.




ESQUEMA DA MOVIMENTAÇÃO DAS PERSONAGENS NO ESPAÇO


→ Poeta
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(est. 1 - 5)                                         Calceteiros



                        → Poeta
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(est. 6 - 11)                                       Calceteiros



                                                           → Poeta
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(est. 12 - 14)                                    Calceteiros



                                                                       → Poeta
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(est. 15 - 17)                                    Calceteiros                           ←Actriz



                                                                                             →Poeta
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(est. 18)                                            Calceteiros                   ←Actriz


                                                           

                                                                                                Poeta
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(est. 19 - 20)                                       ← Actriz
                                                           Calceteiros




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 De tarde

Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!

Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,
Desciam mais atrás, malhadas e turinas.

Do seio do lugar - casitas com postigos -
Vem-nos o leite. Mas batizam-no primeiro.
Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!

Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!
E os fartos animais, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu "costume de percale".

Já não receias tu essa vaquita preta,
Que eu seguirei, prendi por um chavelho? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!

Cesário Verde



COMENTÁRIO

O texto transcrito pertence ao único livro publicado após a morte de Cesário Verde. Reúne um conjunto de poemas cujo principal tema é o da oposição cidade / campo.

            O poema “De tarde” deixa transparecer a preferência de Cesário Verde pelo campo, espaço de vivências infantis, de vida rural e salutar.

            Estas cinco estrofes têm uma regularidade métrica (alexandrinos), estrófica (quadras), rimática (cruzada e emparelhada – ABBA) e de ritmo (binário), o que denota uma preocupação pela perfeição formal, própria do Parnasianismo.

            A primeira quadra começa, inesperadamente, por nos dar o estado de espírito de duas personagens – o sujeito poético e a sua companheira – que foram protagonistas de um episódio, já passado, (“Nesse tempo”) e de que só, na última quadra, nos é dito qual a sua causa.

            Deste modo, o poeta parece querer pôr em evidência a reacção que ambos tiveram perante a situação descrita, começando e acabando o poema com este mesmo assunto.

A reacção é precisamente a oposta entre eles. Esta oposição é sublinhada pelas antíteses entre os adjectivos que qualificam as duas personagens: ela “mais morta do que viva”, ele “destro e bravo” e, na última estrofe, entre as formas verbais dos verbos recear e tremer, referidas a ela e dos verbos segurar e prender que denotam a força e valentia dela.

            Esta valentia é também dada logo na primeira estrofe e do mesmo modo através da comparação entre dois termos antitéticos (“rapazito” / “homenzarrão”), de que os sufixos diminutivo –ito e aumentativo –arrão fazem sobressair o contraste entre o aspecto físico, exterior e o psicológico.

            A antítese presente em “mais morta do que viva”, posta em evidência pela inversão verificada neste primeiro verso do poema, sublinha o medo hiperbólico que a companheira do poeta sentiu, o que é confirmado no último verso do poema com o adjectivo “medrosa”.

            Este adjectivo, por sua vez, entra em contraste com “fina, de luneta”, o que realça, de igual modo, a oposição entre o aspecto exterior e o seu estado psicológico.

          É, sobretudo, nestes contrastes que nos apercebemos da clara dicotomia que o poeta faz entre a cidade e o campo: a cidade produz pessoas apenas preocupadas com a aparência (“costume de percale”; “fina, de luneta”) e que já não se sentem bem em contacto com a natureza.

            Na terceira estrofe, além da referência realista ao trabalho duro do leiteiro (verso 11), o vocativo “amigos!” carrega alguma ironia crítica aos citadinos que, além de não darem valor a esse trabalho duro, ainda se sentem incomodados com quem os serve (verso 12).

            Além desta marca realista, é de notar o carácter naturalista com que o poeta descreve o campo: os substantivos concretos apenas são adjectivados para descrever com maior precisão e objectividade o que vê (bezerrinhas brancas”; “largas ancas”), conforme vai deambulando, dando “um giro pelo vale”.

            Mas a realidade chega ao sujeito poético também através doutros sentidos, a revelar a influência do impressionismo na poesia de Cesário: “pregão”; silêncios vastos”; “roçavam”.

            Por fim, é de notar o tom prosaico e até coloquial deste poema mas que nos transmite uma reflexão mais profunda sobre duas realidades opostas (cidade / campo) e que se mantiveram ao longo da vida do poeta. Nesta composição, esta duração no tempo é dada pelo presente do indicativo da última estrofe, que situa o sujeito poético no presente, com a mesma opinião sobre o acontecimento relatado. 



                                                           
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                                    O céu, de opacas sombras abafado,
                                    Tornando mais medonha a noite fea,
                                    Mugindo sobre as rochas, que saltea,
                                    O mar, em crespos montes levantado;

                                    Desfeito em furacões o vento irado;
                                    Pelos ares zunindo a solta area;
                                    O pássaro nocturno, que vozea
                                    No agoireiro cipreste além pousado;

                                    Formam quadro terrível, mas aceito,
                                    Mas grato aos olhos meus, grato à fereza
                                    Do ciúme e saudade, a que ando afeito,

                                    Quer no horror igualar-me a Natureza;
                                    Porém cansa-se em vão, que no meu peito
                                    Há mais escuridade, há mais tristeza.

                                                                                                                       Bocage




COMENTÁRIO



[INTRODUÇÃO]

            Manuel Maria Barbosa du Bocage destaca-se na nossa literatura, sobretudo, através do soneto onde se misturam o temperamento romântico com a herança formal dos arcádicos.
            O academicismo, a imitação dos antigos, embora com originalidade, defendidos pela Nova Arcádia é, em larga medida, ultrapassado, em Bocage, pela consciência agida da personalidade, traduzida num individualismo que há-de ser bandeira dos românticos.


[ESTRUTURA EXTERNA]

            Este poema tem a estrutura própria do soneto: duas quadras seguidas de dois tercetos, em verso decassilábico, e com rima emparelhada e interpolada nas quadras e cruzada nos tercetos.

[ESTRUTURA INTERNA]

            Divide-se em duas partes: a primeira constituída pelas duas quadras (em que o poeta descreve uma realidade exterior a ele) e metade do 1º verso do 1º terceto que sintetiza e integra os elementos descritos; a segunda parte engloba os dois tercetos onde o eu poético é posto em evidência.
            Esta 2ª parte está articulada à 1ª através da adversativa mas que relaciona a objectividade aparente da 1ª parte com a subjectividade real da 2ª parte.
            Podemos, ainda, subdividir a 2ª parte no 1º terceto, onde se constata o comprazimento por parte do poeta na contemplação da Natureza descrita e, no 2º terceto, em que o poeta afirma que a Natureza não consegue superar em horror o seu estado de espírito.
            Esta estrutura é dinâmica pois estas partes vão modelando, até ao final, o tema.

[TEMA]

            A dor de um amor perdido
           


[ANÁLISE]
           
            Na 1ª parte, os substantivos concretos (céu, noite, mar, rochas, vento, areia, pássaro, cipreste) constituem os elementos da Natureza descritos. Esta Natureza é apresentada no seu mais extremo dinamismo: uns elementos agindo sobre os outros com "fereza". Assim, o céu exerce a sua acção sobre a noite, o mar sobre as rochas, o vento sobre a areia e o pássaro sobre o cipreste. Os termos estabelecedores desta relação são formas verbais (tornando, mugindo, zunindo, vozea, saltea), sendo os dois últimos equivalentes a vozeando e saltando, todos, portanto, com o valor de gerúndio, o que dá a ideia de continuidade a que se acrescenta o exagero significativo dos vocábulos escolhidos.
            Os adjectivos (opacas, abafado, medonha, fea, crespos, irado, solta, nocturno, agoireiro) transmitem o sentimento de "escuridade " e "tristeza" de que o poeta irá falar já no fim do poema.
            O predomínio de adjectivos e a animização que resulta do emprego do termo irado, conferem um carácter de falsa objectividade a esta parte.
            De realçar, ainda, a construção nominal de todas as frases, o que dá a violência do quadro.
            As convulsões da natureza repercutem-se nas inversões e hipérbatos da própria frase.

            Na 2ª parte, chama logo a atenção as três conjunções adversativas: duas de mas no 1º terceto e porém no 2º.
            Na realidade, toda esta parte se opõe à primeira: os substantivos que eram concretos são, agora, predominantemente abstractos (fereza, ciúme, saudade, horror, escuridade, tristeza) a sublinhar o estado de  espírito do sujeito poético e, portanto, a sua subjectividade; a construção nominal dá lugar a uma construção verbal (formam, aceito, ando, quer, igualar-me, cansa.se, há) cujos verbos, no presente do indicativo, nos dão a ideia de permanência, hábito, portanto, a sublinhar a expressão "a que ando afeito"; aparece, apenas, um hipérbato no 1º verso do 2º terceto, e uma inversão no 2º verso do 1º terceto, de resto a frase á linear, o que nos dá a sensação de acalmia, uma  calma própria da "escuridade" e "tristeza" que se seguiu à tempestade descrita na 1ª parte do poema.
            No 2º terceto, o substantivo horror é posto em evidência, quer pela sua posição na frase, quer pela repercussão sonora do som /r/ que se estende a toda a frase e vai ecoar no último verso, sublinhando, ainda mais, a hiperbolização do estado de espírito do sujeito poético. Esta hiperbolização tem, além disso, ao seu serviço, as repetições intensificadoras, conseguidas com as adversativas e com o advérbio de quantidade mais.

[CONCLUSÃO]

            Nota-se, neste poema, uma visão hiperbólica, quer da paisagem tempestuosa, quer dos sentimentos, através do recurso ao hipérbato, ao vocabulário estarrecedor e às repetições intensificadoras de sentido.
            A paisagem denota o gosto pelo nocturno e o fúnebre, isto é, pelo horrendo.
            Os sentimentos de medo e de dor que normalmente são evitados, aqui são assumidos conscientemente.
            É a vitória da expressão hiperbólica sobre a sobriedade dos moldes antigos; do "locus horrendus" sobre o "locus amoenus"; é, finalmente, o triunfo do individualismo, do egocentrismo, que põe a natureza ao serviço dos sentimentos do eu poético, isto, é, como seu reflexo.




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                                    Um mover d'olhos, brando e piadoso
                                    Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
                                    Quasi forçado; um doce e humilde gesto,
                                    De qualquer alegria duvidoso;

                                    Um despejo quieto e vergonhoso;
                                    Um repouso gravíssimo e modesto;
                                    Uma pura bondade, manifesto
                                    Indício da alma, limpo e gracioso;

                                    Um encolhido ousar; ua brandura;
                                    Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
                                    Um longo e obediente sofrimento;

                                    Esta foi a celeste fermosura
                                    Da minha Circe, e o mágico veneno
                                    Que pôde transformar meu pensamento.

                                                                       Luís de Camões


COMENTÁRIO


[Introdução]

            O novo movimento literário, artístico e filosófico que despontou em Itália em finais do séc. XIV teve, em Portugal, no séc. XVI, um dos seus maiores expoentes no campo da literatura: Luís de Camões.
            O Amor, tema que dominava a nossa literatura desde as Cantigas de Amigo, continua a ter lugar de destaque no conjunto da obra lírica de Camões, composta, sobretudo, por sonetos, a medida nova ou estilo novo, de origem italiana.
            Neste soneto, o poeta pinta-nos o retrato da mulher amada, sem recorrer às imagens poéticas convencionais desta época literária (pedras preciosas e semi-preciosas), e por ele utilizadas noutros sonetos-retratos.


[Tema]

            Sedução da beleza espiritual de uma mulher.


[Estrutura externa]

            A estrutura estrófica é a de um soneto (2 quadras e 2 tercetos) em versos decassilábicos, com o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, implicando um transporte de rima da 1ª quadra para a 2ª e do 1º terceto para o 2º.


[Estrutura interna]

            Este soneto divide-se em duas partes, ligadas pelo pronome demonstrativo esta.
            A primeira parte tem uma estrutura estática, não presentando nenhum avanço temático. Apenas retrata uma mulher, através de sintagmas nominais, separados pelo ponto e vírgula.
            A segunda parte é progressiva em relação à primeira porque desenvolve a nota temática, acrescentando-lhe intensidade, quer através da síntese dos aspectos descritos, introduzindo dados inesperados como Circe e mágico veneno, quer ainda pela referência ao efeito produzido no espírito do poeta.


[Análise]

            Na 1ª quadra, as expressões do rosto - "mover d'olhos", "riso" e "gesto" - denotam qualidades psicológicas ("brando", "doce") e morais ("piadoso", "honesto", "humilde"). Os sintagmas que completam cada uma das frases e que são transpostos para os versos seguintes fazem realçar as características apontadas - piedade, humildade e timidez.

            Na 2ª quadra, as atitudes - despejo e repouso - reflectem, igualmente, a psicologia ("quieto", "gravíssimo") e a moral ("vergonhoso", "modesto") da mulher descrita.
            Os dois últimos versos desta estrofe põem em evidência uma qualidade moral - bondade -, produto da maneira de ser ("manifesto indício da alma").

            O 1º terceto confirma os aspectos descritos anteriormente: o oxímoro "um encolhido ousar" repete a contradição existente em "um despejo quieto e vergonhoso"; "uma brandura", qualidade de quem é agradável, carinhoso, relaciona-se com toda a 1ª quadra onde os adjectivos brando e doce veiculam aqueles significados; "um medo sem ter culpa" exprime, ao mesmo tempo, bondade e timidez; "um ar sereno" resume a aparência geral, resultado da conduta que, por sua vez, é consequência natural da maneira de ser desta mulher.
            No último verso deste terceto, o substantivo sofrimento, na acepção clássica do termo, significa tolerância, paciência, atitudes próprias do tímido que se submete docilmente ao que o rodeia, sem se impor. Por isso, é obediente, obediência que se mantém ("longo") porque é inerente ao seu perfil psicológico.
            O predomínio dos adjectivos e substantivos conferem a esta 1ª parte um carácter estático, próprio de um quadro (pintura de uma mulher) que se contempla.
            Os substantivos, na sua maioria, abstractos, ajudam a realçar a essência psicológica desta mulher, por vezes expressa através de frases com termos contraditórios entre si, o que revela a impossibilidade de definir o que é indefinível, facto para o qual o sujeito poético chama a atenção, iniciando cada frase e verso com um artigo indefinido.
            Esta anáfora é o elemento que dá unidade às três primeiras estrofes, formadas, apenas, pela justaposição de sintagmas nominais, o que indicia uma tenção, uma emotividade que, subitamente, vão ser explicadas no último terceto.

            Essa emotividade já sentida, mas ainda contida, é traduzida, na 2ª parte, numa maior expansão expressiva, com a frase a desdobrar-se pelos 3 versos da estrofe, e no discurso pessoal evidenciado pelos pronomes minha e meu.
            Os indefinidos constantes na 1ª parte são substituídos pelas definições "a celeste fermosura" e " o mágico veneno" que, por serem conceitos antitéticos entre si, não resolvem a indefinição inicial, antes sintetizam o retrato da mulher amada numa única realidade: Circe.
            Por outro lado, os artigos definidos, juntamente com o possessivo minha indicam proximidade (no pensamento) do poeta com esta mulher.
            O demonstrativo esta substitui todas as frases nominais anteriores, estando, portanto, ao serviço daa síntese e da ideia de aproximação já referidas. É também o sujeito da única frase verbal do poema.
            Os verbos, no pretérito perfeito, indicam uma acção já realizada completamente. Por isso, no presente, o poeta está a sofrer o poder da acção exercido pela Circe, expresso pela perifrástica "pôde transformar" em vez de transformou.
            Temos, assim, um contraste nítido entre o retrato de uma serenidade duradoira (presente implícito na 1ª parte) e o retrato de um indivíduo completamente virado do avesso como resultado (pretérito perfeito da 2ª parte) daquele poder que nenhuma outra mulher conseguiu ter sobre o poeta.


[Conclusão]

            O olhar, o riso e o gesto brandos são aspectos exteriores da mulher ideal do período renascentista. Contudo, neste poema, predominam adjectivos que indicam características espirituais que, pela sua beleza, conseguiram enfeitiçar o poeta.
            Camões, tal como Petrarca já havia feito, parece mais interessado em ir além das aparências físicas e desvendar o mundo interior da mulher, o que está, sem dúvida, em sintonia com a exaltação do Homem como ser único e individual, uma das principais características da maneira de ver o mundo deste período da nossa História.



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                                               Senhora, partem tam tristes
                                               meus olhos por vós, meu bem,
                                               que nunca tam tristes vistes
                                               outros nenhuns por ninguém.

                                               Tam tristes, tam saudosos,
                                               tam doentes da partida,
                                               tam cansados, tam chorosos,
                                               da morte mais desejosos
                                               cem mil vezes que da vida.
                                               Partem tam tristes os tristes,
                                               tam fora d'esperar bem,
                                               que nunca tam tristes vistes
                                               outros nenhuns por ninguém.

           
                                                                       Joan Roiz de Castell-Branco



COMENTÁRIO

[Introdução]

            João Rodrigues de Castelo-Branco é um dos 286 autores contemplados no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende que constitui o mais precioso documento da nossa literatura do séc. XV.
            Este Cancioneiro expressa o carácter fútil de uma poesia destinada a entreter os cortesãos do Paço. Os temas são, em grande parte, os do amor cortês, glosado, muitas vezes, através de simples jogos de palavras, vazios de conteúdo. Revela-nos, no entanto, alguns poetas de maior qualidade como este nosso autor que conseguem apurar a forma e apelar à emotividade.


[Estrutura externa]

            A estrutura externa é própria da cantiga com um mote de 4 versos e uma glosa de 9, repetindo-se os dois últimos versos do mote no fim da glosa.
            A métrica é de sabor popular - redondilha maior.
            A rima do mote é cruzada, alternadamente grave e aguda. Na glosa, repete-se o tipo de rima do mote nos últimos 4 versos, pois as palavras finais são as mesmas, apesar de só se repetirem, integralmente, os dois últimos versos. Nos restantes versos da glosa, há um aproveitamento dos diferentes tipos de rima, mantendo-se constante o acento grave.


[Estrutura interna]

            A estrutura interna do poema está em perfeito acordo com a estrutura externa: é contínua já que há uma glosa ao mote e é circular por se repetir, no fim, os dois últimos versos do mote.


[Tema]


            O tema é o da tristeza causada pelo afastamento em relação à mulher amada.


[Análise]

            Como sempre, no mote, são apresentadas as ideias dominantes do tema que, nesta composição, se podem dividir em duas, tantas quantas as orações desta quadra:

            - A oração principal, constituída pelos dois primeiros versos, é iniciada por um vocativo aristocrático "Senhora" que, se por um lado, estabelece de imediato uma situação de comunicação directa entre o sujeito poético e esta mulher, por outro, essa comunicação é feita em termos de vassalagem por parte do emissor. Assim, o aposto "meu bem" revela um amor casto que só pode ser traduzido discretamente através da expressão dos olhos: "tam tristes / meus olhos". Esta tristeza tem como causa o afastamento do poeta ("Partem") da mulher amada, o que a torna mais inacessível e distante.

            - A segunda oração expressa a consequência destes factos: através da repetição do advérbio de intensidade Tam e das formas negativas nunca, nenhuns, ninguém, acentua-se a hiperbolização e a singularidade daquela tristeza.
            Temos, portanto, como tema a imensa e singular tristeza causada pelo afastamento do poeta em relação à mulher amada.

            Este sentimento é glosado pelos adjectivos tristes, saudosos, doentes, cansados e chorosos que culminam, na sua sequência ascendente de intensidade, na expressão de um comparativo de superioridade: "da morte mais desejosos / cem mil vezes que da vida".
            A natureza semântica destes adjectivos revela um amante essencialmente espiritual, cujo sofrimento se torna mais patente pela colocação do temo morte no início do verso e pela utilização da expressão hiperbólica "cem mil vezes".

            "Partem tam tristes os tristes" é uma repetição parcial do primeiro verso do mote que tem por sujeito já não o substantivo concreto olhos, subentendido também nos versos anteriores da glosa, mas o adjectivo substantivado tristes. Isto é, há uma redução gradual do eu ao seu próprio estado de espírito: primeiro, olhos em vez de eu; segundo, olhos subentendidos para pôr em evidência as suas qualidades; finalmente, tristes em vez de olhos. Esta focalização no sentimento experimentado é confirmada pela repetição do mesmo termo - tristes - não só ao longo do poema, mas ainda neste mesmo verso, embora com funções sintácticas e categorias morfológicas diferentes.

            "Tam fora de esperar bem" é uma explicação complementar da causa da tristeza presente e futura: a separação a que o poeta é obrigado leva-o a perder toda a esperança ("Tam fora d'esperar") de encontrar a satisfação espiritual plena ("bem").
            O jogo de palavras conseguido entre os termos bem do mote e bem da glosa diz-nos que é aquela Senhora a única fonte desta satisfação e, por conseguinte, não poderá haver outra. Daí, a repetição da oração consecutiva do mote a fechar o poema, confirmando a nota temática da tristeza profunda e ímpar sentida pelo poeta.


[Conclusão]

            O facto de, com a partida, perder a possibilidade de ver a mulher amada é causa da tristeza que percorre todo o poema.
            O leitor é contagiado por um ritmo pautado pelo advérbio tam a sugerir, talvez, o bater do coração e pela repetição dos fonemas [   ] e [ Z ] a sublinhar o choro, o desalento, a tristeza  sem par.
            O termo olhos, apesar de só uma vez explícito, é a palavra-chave do poema quer pela sua omnipresença, quer pelo seu valor axial: olhos = tristeza.
            Esta composição insere-se na temática predominante da poesia trovadoresca de inspiração provençal - a coita de amor - tão repetidamente trabalhada no Cancioneiro Geral. No entanto, o grande artifício poético que, tantas vezes, escondia um amor superficial e, outras tantas, fingido, é posto, nesta composição, ao serviço da expressão de um sentimento profundo, de uma paixão que parece sinceramente sentida, conseguindo apelar à emotividade do leitor.




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                                                Só a Arte tem o poder
                                                De a todos nós transmitir
                                                O que todos podem ver
                                                Mas poucos sabem sentir.

                                                Dom de Artista tem quem cria
                                                Obras de arte: esse é artista,
                                                Como não é quem copia
                                                Aquilo que tem à vista.

                                                Nada direi, mas, enfim,
                                                Vou ter a grande alegria
                                                De a Arte dizer por mim
                                                Tudo quanto eu vos diria.

                                                Mágoas descritas em verso,
                                                Quando nascem de almas sãs,
                                                Percorrem todo o Universo
                                                Falando às almas irmãs.

                                                                                  António Aleixo





COMENTÁRIO


            Este poema está constituído por quatro quadras, em redondilha maior e com rima cruzada em todas as estrofes. Além destes aspectos formais, podemos, ainda, verificar o encavalgamento entre todos os versos de cada uma das quadras, o que, por um lado, constitui uma característica da poesia popular e, por outro, contribui para fazer de cada estrofe uma unidade de significação com valor semântico próprio, podendo, cada uma delas, ser lida como um todo.

            No entanto, o termo "Arte", presente nas três primeiras quadras, assim como o primeiro verso da última estrofe que explica e particulariza o campo da arte ("em verso") referida, funcionam como elementos de ligação entre as quatro estrofes, formando, assim, uma unidade maior de significação que é todo o poema.

            Deste modo, podemos considerar haver uma estrutura contínua, formada pelo encadeamento de quatro partes semânticas complementares entre si, porque as ideias expressas na primeira estrofe são retomadas nas seguintes, num crescendo quanto a quantidade de informação temática.

            Assim, o tema da Arte como único meio de comunicar sentimentos está expresso em todas e cada uma das estrofes.

            A ideia de comunicação é logo dada no segundo verso pelo verbo "transmitir"; na terceira estrofe, com a repetição do verbo dizer ("direi"; "dizer"; "diria"), reforçado pelo tom coloquial ("mas, enfim") e pelo discurso pessoal com o receptor num "vos"; finalmente, na última quadra, com o gerúndio do verbo falar ("falando") a estabelecer ligação entre as "almas sãs" e as "almas irmãs".

            Por outro lado, o modalizador "só" confere um cariz único e peculiar à "Arte" que é o de transcender o próprio artista ("De a arte dizer por mim / Tudo quanto eu vos diria"), estando para além do seu presente (futuro em "Nada direi" e "Vou ter a grande alegria").

            A "Arte" comunica sentimentos ("sentir"; "Mágoas") que são "Tudo quanto eu vos diria". Deste modo, o sujeito poético assume-se como Artista, como aquele que "não copia aquilo que tem à vista", que escreve "em verso", e que é, portanto, apenas o canal duma situação de comunicação, o veículo através do qual a Arte se realiza, mesmo que o poeta não se esforce ("Nada direi").

            As primeira, segunda e quarta estrofes têm em comum os verbos no presente do indicativo, com frases declarativas, a conferir um carácter aforístico, universal, a todas as afirmações.

           
            Assim, o tom pessoal, que só aparece na terceira estrofe, é esbatido nas restantes onde se estabelece, na primeira quadra, uma relação Arte - nós (poucos); na segunda quadra, define-se o artista e o não artista, sendo a última estrofe a explicitação e a síntese daquelas duas ideias: a "Arte" são "Mágoas descritas em verso"; o “Dom de Artista" está nas "almas sãs" onde podemos incluir o "eu" da terceira estrofe; os dois últimos versos remetem para a dicotomia "todos podem ver" / "poucos sabem sentir".

            Podemos, ainda, constatar o facto de as três primeiras estrofes terem como núcleo significativo uma antítese com a adversativa "mas" a separá-las, nas primeira e terceira estrofes, e a partícula comparativa "como", com o mesmo valor adversativo, na segunda estrofe. Assim, na primeira estrofe, "todos" opõe-se a "poucos"; na segunda, "artista" a "não" artista; na terceira, "Nada" a "Tudo". Estes pares antitéticos, se articulados verticalmente, darão o seguinte esquema semântico: todos - não artista - nada; poucos - artista - tudo. Na última estrofe, a dicotomia todos-poucos está presente, de forma mais subtil, em "Todo o Universo" - "almas irmãs", preferindo, o poeta, realçar a comunicação, a identificação (rima pura) entre as "almas sãs" e as "almas irmãs".

            Este poema, pelas características formais apontadas, pode ser classificado de popular. No entanto, afasta-se desse padrão, quer pelo conteúdo, quer pela riqueza da rima.
            Temos, aqui, uma certa concepção de poesia, numa formulação de tipo geral, filosófico, que transcende o circunstancial, o que juntamente com um vocabulário simples faz lembrar algumas poesias de Fernando Pessoa como Autopsicografia e Isto. Ainda a rima aguda e pobre, na primeira estrofe; grave e pobre, na segunda; alternadamente, aguda e grave e sempre rica, na terceira estrofe; e, de novo, alternadamente grave e aguda e sempre pobre na quarta estrofe, a par de um número constante de sílabas métricas (sete) conferem a este texto uma qualidade literária já reconhecida.
           
            António Aleixo é, sem dúvida, mais que um poeta popular que, e segundo o seu amigo Joaquim Magalhães, tem "uma correcção de linguagem e, sobretudo, uma expressão concisa e original de uma amarga filosofia" que o dista, em muito, dos poetas populares algarvios, como se pode comprovar pelo exemplo recolhido do Ti Jaquim, na serra algarvia, em 1987 e que se transcreve a seguir.



                                    À LUA NINGUÉM PODE CHEGAR


                                                Eles dizem que foram à lua
                                                E eu não quero acreditar
                                                Eles não foram nem chegam a ir
                                                Lá ninguém pode chegar.

                                                Anda muita família errada
                                                No território do Ocidente
                                                Há no mundo muito experiente
                                                Mas sobre isso não sabe nada
                                                Primeiramente diz que era habitada
                                                E cada um despacha a sua
                                                Ela alumeia em casa e na rua
                                                E desaparece a claridade
                                                Da mentira fizeram verdade
                                                Eles dizem que foram à lua

                                                Pois ela é nova e cheia
                                                Vai correndo o destino que tem
                                                E falam pr’à i também
                                                Que há lá pedras e areia
                                                Já trouxeram uma mão cheia
                                                Segundo se ouve falar
                                                Os aparelhos estão a anunciar
                                                Palestra da mais inferior
                                                E seja que motivo for
                                                Eu não quero acreditar.

                                                Há quem tenha essa ilusão
                                                Juntamente uma grande alegria
                                                Pelo modo como acusa na telefonia
                                                E várias vezes na televisão
                                                Tem acusado em toda a nação
                                                Que até dá gosto ouvir
                                                Pois só sabem é mentir
                                                E assim iludem o freguês
                                                Ainda digo mais outra vez
                                                Eles não foram nem chegam a ir

                                                O mais que há é paleio de feira
                                                Pois eu jogo os meus planos
                                                Diz que foram os americanos
                                                Naturalmente colocar a bandeira
                                                Levaram uma escada de primeira
                                                Porque houve quem os visse pular
                                                O que eles se houveram de alembrar
                                                Para o povo se convencer
                                                Que eles digam o que dizer
                                                Lá ninguém pode chegar