METODOLOGIA PARA ANÁLISE DO TEXTO POÉTICO
1º LEITURA
É
a base de toda a análise.
Deve ler-se o texto tantas vezes quantas as necessárias até se ter compreendido total ou
suficientemente o seu sentido.
Para
isso, começa-se por:
A) Uma
leitura compreensiva, consultando o dicionário de modo a que não fique
nenhuma palavra, parte ou texto no seu conjunto por entender.
É
possível que, neste momento, ainda restem alusões históricas, mitológicas,
culturais ou metáforas por esclarecer. Para dar resposta a estas dúvidas,
necessitaremos de outros instrumentos de trabalho, além da nossa sensibilidade.
B) Uma
leitura estética. Consiste em nos situarmos numa atitude emotiva, não
racional, deixando-nos penetrar pela beleza do texto.
Tentaremos,
então, precisar algumas questões: "que me atrai ou não neste poema?";
"que me diz este texto?"
A
resposta a estas perguntas determinará a orientação da análise que, como se vê,
é sempre subjectiva.
Haverá
tantas análises de um mesmo texto, quantos os indivíduos a analisá-lo.
NOTA: Estes dois tipos de leitura são complementares
porque a sensibilidade sem informação produz apenas um grito admirativo; a
informação sem sensibilidade, uma análise de dados vazios, sem interesse.
2º LOCALIZAÇÃO
É uma
introdução em que se situa o texto na obra a que pertence, na época literária
e, ao mesmo tempo, alerta o leitor para a sua singularidade (interesse
estético, ideológico, etc.)
3º IDENTIFICAÇÃO DO TEMA
O tema é
o núcleo significativo do texto. É a ideia resumida do que o poema diz, da
intenção do autor.
O texto
lírico expressa, quase sempre, um sentimento ou uma sensação. Por isso, a ideia
fundamental do tema pode expressar-se através de um substantivo abstracto,
rodeado de complementos.
4º IDENTIFICAÇÃO DA ESTRUTURA
O autor,
ao escrever, vai compondo, colocando as diferentes partes de um todo - o texto
- numa determinada ordem.
Identificar
a estrutura é descobrir de que partes está composto o texto.
Todas as
partes estão relacionadas entre si porque se o autor quis expressar um tema, é
obrigatório que todas as partes contribuam para expressar esse tema e,
portanto, que estejam relacionadas entre si.
As
partes do texto caracterizam-se e distinguem-se porque o tema adquire, em cada
uma delas, modulações mais ou menos diferentes.
Pode não
haver partes, nem ordem. A desordem pode ser a estrutura do texto.
5º ANÁLISE
Há
uma estreita relação entre tema e forma porque, de todos os meios linguísticos
ao dispor do escritor, este escolheu apenas os que lhe pareceram os mais
adequados para expressar melhor o tema.
O tema
está, portanto, presente nos traços formais do texto.
A
análise consistirá em ir comprovando, linha a linha ou verso a verso, como o
tema vai determinando os traços formais do texto e justificar-se-á cada traço
formal como uma exigência do tema.
6º CONCLUSÃO
Até
agora, as nossas observações, embora guiadas por algo que as unia - o tema -,
são bastantes dispersas. Dá a sensação de que não se captou a essência e o
significado do texto.
A
conclusão fará o balanço dessas observações, reduzindo-as às suas linhas
gerais, servindo, também, para dar a impressão pessoal do leitor.
Na
conclusão deve-se confrontar o tema com a forma no seu conjunto e acabar com
uma opinião pessoal sincera sobre o texto, o que nunca será feito com frases do
tipo: "É um texto muito bonito..."; "Tem muita
musicalidade..."; "Descreve muito bem..."; "Parece que se
está a ver...".
Exemplos de análise de texto:
Lágrima de Preta
Encontrei
uma preta
que
estava a chorar,
pedi-lhe
uma lágrima
para
a analisar.
Recolhi
a lágrima
com
todo o cuidado
num
tubo de ensaio
bem
esterilizado.
Olhei-a
de um lado,
do
outro e de frente:
tinha um ar
de gota
muito
transparente.
Mandei
vir os ácidos,
as
bases e os sais,
as
drogas usadas
em
casos que tais.
Ensaiei
a frio,
experimentei
a lume,
de
todas as vezes
deu-me
o que é costume:
Nem
sinais de negro,
nem
vestígios de ódio.
água
(quase tudo)
e
cloreto de sódio.
António Gedeão
COMENTÁRIO
[Introdução]
António
Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, publica, em 1964, Poesias
Completas onde se insere Lágrima de Preta.
Este
poema condensa, de forma bastante original, certos aspectos que são recorrentes
na obra deste autor: uma forma simples, quase popular; um olhar neo-realista
sobre o sofrimento daqueles que são humilhados e explorados; uma linguagem
denotativa da sua formação científica e, por fim, um tom didáctico e pedagógico
a revelar a sua experiência como professor.
[Estrutura externa]
Este
poema está organizado em quadras de redondilha menor, com o esquema rimático abcb, o que o aproxima da poesia
popular.
[Estrutura interna]
A sua
estrutura é contínua, formada pelo encadeamento complementar das diferentes
partes, que coincidem com cada uma das estrofes.
[Tema]
O tema
da condenação do racismo está, por isso, presente desde o 1º verso, numa
progressão, de etapa a etapa do método científico, aplicado à lágrima de preta.
[Análise]
Na 1ª
estrofe, são-nos dados os 3 elementos que vão estar presentes ao longo do
poema:
- o eu
poético ("encontrei", "pedi") - sujeito da acção
- a
lágrima - objecto da acção
-
analisar - acção a desenvolver
Há,
portanto, uma sintaxe mínima da transmissão de uma mensagem: sujeito, verbo,
objecto.
O
sujeito da acção surge como um indivíduo sem intenção prévia em relação ao
objecto de análise: ele não procura uma preta, ele encontra casualmente
("encontrei") uma preta; ele não se interessa pelas razões que
motivaram o choro, constatando, apenas, a sua duração através de uma
perifrátrica (“estava a chorar”). Assume, assim, uma frieza objectiva.
Temos, então,
o sujeito da acção com intuitos exclusivamente científicos, que concentra a
atenção sobre o objecto a analisar.
Mas, a
análise científica tem sempre um propósito: a confirmação de uma hipótese,
neste caso, a relação entre dois factos observados: a cor da pele da mulher, isto
é, a aparência e uma lágrima - a essência.
Esta
hipótese está implícita, de forma extremamente económica, no termo preta.
Preta,
metonímia onde a cor se tornou denominação, revela uma linguagem depreciativa,
enraizada no senso comum. Ao utilizá-la, o poeta elabora a sua hipótese: aquela
preta, que representa todas as demais (o indefinido “uma” está ao serviço da
generalização), será, realmente, um ser diferente dos que não são pretos?
Haverá razões para a marginalização social a que é submetida?
O sujeito
poético, agora perfeitamente identificado como cientista, vai proceder, através
do método experimental, à verificação da hipótese formulada.
Assim,
nas quatro estrofes seguintes, são referidas as diferentes etapas deste
processo:
Na 2ª
estrofe, a tónica é posta no esmero científico que orientará toda a
experimentação, estando os adjectivos todo e esterilizado, assim
como o advérbio bem ao serviço da intensificação desta ideia.
Na 3ª
estrofe, o poeta-cientista observa ("olhei-a") activamente ("de um
lado / do outro e de frente") o seu objecto de análise, tirando desse
exame conclusões ainda empíricas porque se baseiam na observação das aparências
("tinha um ar").
A 4ª
estrofe marca a etapa decisiva para a verificação da hipótese: a experimentação
laboratorial.
Por
outro lado, os dois últimos versos dão a entender que experiências idênticas já
haviam sido realizadas.
Deduz-se,
então, que a diferença, agora, está no facto de se tratar de uma lágrima de preta.
Na 5ª
estrofe, os dois primeiros versos sublinham o carácter exaustivo desta análise,
quer pelo paralelismo sintáctico, quer pela explicitação dos modos
diversificados e mesmo opostos ("a frio / ao lume") através dos quais
a experiência foi levada a cabo.
Assim, não haverá razão para dúvidas sobre as conclusões que, como os dois
últimos versos nos antecipam, são perfeitamente iguais às das experiências
anteriores.
A última
estrofe constitui a formulação dessas conclusões que aparecem divididas em duas
partes, com o ponto final a separá-las.
Os dois
primeiros versos negam rotundamente, pela repetição da coordenativa nem
e pelo paralelismo sintáctico, a dúvida levantada inicialmente - a de os pretos
serem, por essência, diferentes dos demais.
Agora, como
cientista, afirma que não existem razões para, socialmente, fazer distinção de
raças (“nem sinais de negro”). Do mesmo modo, o choro não contém o sentimento
mais reservado contra quem a faz sofrer (“nem sinais de ódio”).
Nos dois
últimos versos corrobora a declaração feita anteriormente, expondo os
resultados obtidos, de forma minuciosa ("quase tudo") e numa
linguagem científica ("cloreto de sódio" em vez de sal).
A
ausência de formas verbais nesta quadra sugere a universalidade e perenidade
destas conclusões.
[Conclusão]
Estamos,
aparentemente, perante um texto de tipo discursivo, de mero relato objectivo de
um acontecimento, já que frases de tipo declarativo, substantivos e verbos
predominam como categorias verbais.
A
natureza semântica dos verbos e substantivos apoiam o carácter científico do
acontecimento relatado.
A total
ausência de termos rebuscados ou de artifícios poéticos tornam esta composição
muito próxima da linguagem quotidiana, portanto, acessível a qualquer um.
No
entanto, regista-se uma preocupação eminentemente filosófica no assunto tratado
- procura da essência de um fenómeno -, e de intervenção social, ao mostrar que
preconceitos rácicos radicados na nossa sociedade não têm explicação, nem
científica, nem humana.
Todos
estes aspectos juntamente com as características da métrica escolhida,
conformam uma poesia de cariz didáctico, comprometida socialmente.
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A
UM POETA
Surge
et ambula!
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto
à sombra dos cedros seculares,
Como
um levita à sombra dos altares,
Longe
da luta e do fragor terreno,
Acorda!
é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou
as larvas tumulares...
Para
surgir do seio desses mares,
Um
mundo novo espera só um aceno...
Escuta!
é a grande voz das multidões!
São
teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas
de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te,
pois, soldado do Futuro,
E
dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador,
faze espada de combate!
Antero
de Quental
COMENTÁRIO
Antero de Quental, autor das "Odes Modernas", é quem desencadeia
as irritações e tempestades do meio literário português do seu tempo,
conhecidas por "Questão Coimbrã". Com efeito, Antero, ainda estudante
de Coimbra, rebela-se contra a poesia oficial de Castilho e seus protegidos, e
proclama a independência e combatividade dos poetas. Este acto de rebeldia
surge como consequência, não só do seu temperamento e desejo de justiça, mas
duma forte reacção ao Romantismo que, entre nós, degenerara num Ultra-romantismo
vazio e convencional.
Este soneto, publicado na
3ª parte dos "Sonetos Completos", traduz o carácter combativo e
revolucionário que o poeta deveria assumir, o que já havia dado origem às
"Odes Modernas", onde Antero, numa nota da 1ª edição, afirma: "a
Poesia moderna é a voz da Revolução".
A estrutura deste soneto é
contínua, formada por duas partes sintáctica e semanticamente complementares:
na 1ª estrofe, descreve-se a atitude do poeta perante o mundo; nas estrofes
seguintes, essa descrição desaparece para dar lugar a uma série de apelos
dirigidos ao Tu do início do poema.
Esta estrutura é
progressiva, já que estes apelos, dados pelos imperativos, estão organizados de
forma crescente de intensidade, redobrando-se na última estrofe.
O poema começa com o
pronome tu apontando-nos de imediato para uma situação de comunicação
directa, própria do estilo coloquial.
A oração relativa
restritiva e a sinédoque que se lhe seguem desfazem a indefinição referida no
título. Temos, então, não um poeta qualquer, mas aquele que dorme, isto é,
aquele que é só espírito porque está morto há muito ("à sombra dos cedros
seculares"). E está morto porque alheio, arredado da vida ("longe da
luta e do fragor terreno"). O particípio passado "posto" e o
adjectivo "sereno" sublinham esta passividade e alheamento.
A comparação entre o poeta
e um sacerdote desvenda-nos a metáfora do 2º verso: o sacerdote "à sombra
dos altares" dá lugar a um ritual, sempre o mesmo, de todos já sabido; o
poeta, "à sombra dos cedros seculares", oficia o ritual de uma mesma
poesia: velha, por todos já conhecida.
As aliterações em / ∫ / dos dois
primeiros versos e em / l / dos dois últimos delimitam os dois termos da
comparação.
A rima interpolada entre
dois adjectivos que, pelo contexto semântico se opõem, e o quiasmo existente
entre os dois últimos termos dos 1º e 4º versos, realçam e ampliam o divórcio
entre o poeta de que se fala e a vida real.
A rima emparelhada
sublinha a igualdade de posições entre o poeta e o sacerdote, dada pela
comparação entre as duas metáforas em que a repetição do complemento de lugar
"à sombra" expressa uma atitude de refúgio na passividade do ritual.
A 2º parte é iniciada pelo
imperativo "Acorda!" que é, por um lado, a articulação sintáctica com
a 1º estrofe e, por outro, o começo de um estilo mais emotivo e apelativo que
caracteriza o resto do poema. Segue-se-lhe uma justificação ("é
tempo!") que, por sua vez, é também explicada: o sol, pela sua posição no
céu, indica o momento do dia em que as sombras desaparecem e tudo se torna mais
nítido e brilhante.
O advérbio de tempo
"já" reforça e actualiza este momento em que já não há condições para
que as larvas tumulares sobrevivam porque são o produto da decomposição dos
corpos mortos e, portanto, imagem da poesia velha, caduca, criada por aquele
poeta.
No verso 7, o termo
"seio" revela-nos, no seu sentido etimológico, a profundidade dos
mares que o deítico "esses" indica serem a luta e o fragor terrenos.
Para que dessa profundeza
nasça um mundo novo, o poeta terá apenas que dar o seu "aceno", o seu
sinal que será uma poesia nova, diferente.
O 1º terceto funciona como
nexo do último verso da 1ª parte. É um novo apelo ao poeta que, depois de ter
acordado, deve ouvir com atenção ("Escuta!") o que as multidões em
uníssono clamam ("a grande voz").
No 2º verso desta estrofe,
definem-se os nomes presentes no verso anterior: as multidões são irmãos do
poeta; a voz são canções.
No verso seguinte, a
adversativa mas explicita qualquer ideia que possa ter surgido com as
reticências: as canções são de alerta e de guerra, isto é, de revolução.
Na última estrofe, temos a
conclusão, desaparecendo, por isso, todas as reticências.
Depois de ter acordado por
ser pleno dia e de ter escutado o clamor das multidões, o poeta deve erguer-se,
tal como os seus irmãos, transformado já em "soldado do Futuro". Soldado,
porque integrado nas multidões que se preparam para a revolução; do Futuro,
porque se opõe ao poeta do presente que dorme, longe desta luta que deflagra
com canções de uma nova poesia.
O termo Futuro
surge como símbolo do mundo novo. O poeta ("sonhador") terá como
missão o combate, feito de sonho e desinteresse ("sonho puro"), através
da sua poesia ("espada") que será a porta-voz, a luz da revolução
anunciada.
Temos, portanto, um poema
de empenho social e de cariz revolucionário.
Antero de Quental
assume-se como o profeta, tal como o da Bíblia que diz "Surge et
ambula!", que anuncia um mundo novo, do qual o poeta deve ser o arauto e
aquele que indica o caminho a seguir pelas multidões.
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O Palácio da Ventura
Sonho
que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d' ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d' ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
Comentário
Antero
de Quental é o poeta dos ideais de justiça e fraternidade, o que o leva a
liderar as vozes que se levantaram contra o Ultra-romantismo vazio e
convencional. Ficaram conhecidas as suas intervenções na Questão Coimbrã e,
mais tarde, na organização das Conferências do Casino onde proclamou a
independência e combatividade dos poetas.
Este
poema faz parte de um conjunto reunido num volume intitulado “Sonetos
Completos”.
O tema deste soneto é o da busca da
felicidade que não existe.
O
sujeito poético identifica-se com um cavaleiro andante que percorre um espaço à
procura da Ventura.
Começa
por dizer que se trata de um sonho, o que nos remete para o mundo dos ideais.
Além disso, o vocabulário escolhido (cavaleiro andante, palácio encantado,
espada, armadura) têm conotações com as novelas de cavalaria, onde a aventura,
a busca de um ideal eram o assunto principal.
O
percurso deste cavaleiro andante passa por quatro momentos: primeiro, o do
entusiasmo (V. 1-4); segundo, o do desalento (V. 5-6-); terceiro, o do
renascimento da esperança (V. 7-12); quarto, o da decepção final.
Podemos,
então, dizer que o espaço percorrido não é físico, mas sim psicológico, sendo
todo o poema uma metáfora de um processo psicológico vivido pelo sujeito
poético.
As
conjunções adversativas Mas e a conjunção e que, neste contexto,
adquire o mesmo valor adversativo, marcam os diferentes momentos do poema.
Da mesma
forma, a passagem de estrofe para estrofe cria a ilusão do tempo que passa.
As
antíteses “palácio ... fulgurante” / “escuridão” e “com fragor” / “silêncio”
evidenciam as tendências de sentido oposto na poesia de Antero: o luminoso
versus nocturno; a busca da felicidade versus pessimismo, desilusão.
A
pontuação – exclamações e reticências – denotam os dois sentimentos dominantes
neste soneto: por um lado, o entusiasmo, a esperança e, por outro, o desalento
e a decepção.
É em
decepção que termina o último verso com os substantivos “silêncio e escuridão”,
resumidos no pronome indefinido “nada” que, por sua vez, é reforçado com o
advérbio de quantidade “mais”.
Temos,
pois, um soneto onde se reflecte o pessimismo a que chegou o autor, depois do
seu entusiasmo por construir um mundo novo.
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CRISTALIZAÇÕES
Faz frio. Mas depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma
imensa claridade crua.
De cócoras,
em linha, os calceteiros,
Com
lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de
lado a lado a longa rua.
Como as elevações secaram do relento,
E o
descoberto sol abafa e cria!
A frialdade
exige o movimento;
E as poças
de água, como em chão vidrento,
Refletem a
molhada casaria.
Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas,
gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem
na manhã bonita,
Uns
barracões de gente pobrezita
E uns
quintalórios velhos com parreiras.
Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Tomam por
outra parte os viandantes;
E o ferro e
a pedra - que união sonora! -
Retinem alto
pelo espaço fora,
Com choques
rijos, ásperos, cantantes.
Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços
Cuja coluna
nunca se endireita,
Partem
penedos. Cruzam-se estilhaços.
Pesam
enormemente os grossos maços,
Com que
outros batem a calçada feita
A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos
forros! Numa das regueiras
Acamam-se as
japonas, os coletes;
E eles
descalçam com picaretes,
Que ferem
lume sobre pederneiras.
E nesse rude mês, que não consente as flores,
Fundeiam,
como esquadra em fria paz,
As árvores
despidas. Sóbrias cores!
Mastros,
enxárcias, vergas. Valadores
Atiram terra
com as largas pás.
Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -
Carros de
mão, que chiam carregados,
Conduzem
saibros, vagarosamente;
Vê-se a
cidade, mercantil, contente:
Madeiras,
águas, multidões, telhados!
Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
Em arco, sem
as nuvens flutuantes,
O céu renova
a tinta corredia;
E os charcos
brilham tanto, que eu diria
Ter ante mim
lagoas de brilhantes!
E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo
encontro alegremente exacto.
Lavo,
refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me,
excitados, sacudidos,
O tacto, a
vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão
lavada e igual temperatura!
Os ares, o
caminho, a luz reagem;
Cheira-me a
fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a
campo, a lenha, a agricultura.
Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
Dois
assobiam, altas as marretas
Possantes,
grossas, temperadas de aço;
E um gordo,
o mestre, com um ar ralaço
E manso,
tira o nível das valetas.
Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão
custosa! Que diabo!
E os
cavadores pousam as enxadas,
E cospem nas
calosas mãos gretadas,
Para que não
lhes escorregue o cabo.
Povo! No pano cru rasgado das camisas
Uma bandeira
penso que transluz!
Com ela
sofres, bebes, agonizas:
Listrões de
vinho lançam-lhe divisas,
E os
suspensórios traçam-lhe uma cruz!
De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge um
perfil direito que se aguça;
E ar matinal
de quem saiu da toca,
Uma figura
fina, desemboca,
Toda abafada
num casaco à russa.
Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
E a quem, à
noite na plateia, atraio
Os olhos
lisos como polimento!
Com seu
rostinho estreito, friorento,
Caminha
agora para o seu ensaio.
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões.
Os bons trabalhadores!
Os filhos
das lezírias, dos montados:
Os das
planícies, altos, aprumados;
Os das
montanhas, baixos, trepadores!
Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a
tiritar em suas peles,
Espanta-me a
actrizita que hoje pinto,
Neste
Dezembro enérgico, sucinto,
E nestes
sítios suburbanos, reles!
Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles,
bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na
sanguínea, brutamente:
E ela vacila,
hesita, impaciente
Sobre as
botinhas de tacões agudos.
Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda
o público a passagem abra,
O demonico
arrisca-se, atravessa
Covas,
entulhos, lamaçais, depressa,
Com seus
pezinhos rápidos, de cabra!
Cesário
Verde
COMENTÁRIO
Cesário Verde escreveu a respeito
deste poema: "São uns versos agudos, gelados, que o inverno passado me
ajudou a construir, lembram um poliedro de cristal e não sugerem, por isso,
quase nenhuma emoção psicológica e íntima".
Na realidade, esta composição
apresenta várias cenas justapostas tal como as faces de um poliedro.
Podemos encontrar, no entanto, três
assuntos predominantes: o tempo meteorológico, os calceteiros e a actriz,
estando os dois primeiros presentes do princípio ao fim do poema.
A estrutura é, por isso, contínua
porque formada pelo encadeamento das diversas cenas ou partes semânticas, e
progressiva por se verificar um desenvolvimento temático crescente quanto à
quantidade de informação.
Como já se disse, o tempo
meteorológico e os calceteiros são os dois elementos que acompanham o
desenvolvimento temático do princípio ao fim. É com eles que se inicia o poema
e por isso vamos analisar com mais detalhe a 1ª estrofe.
"Faz frio" é uma afirmação
curta, incisiva, iniciada por um verbo no presente do indicativo que nos situa,
de imediato, no tempo cronológico e meteorológico do poeta.
A adversativa que se segue põe em
contraste o dia presente com os dias chuvosos que o precederam, cujo rigor e
persistência são sublinhados com o emprego de sibilantes e dentais.
O 2º verso traz, ainda, um eco do
tempo passado, no seu recorte fonético, através da sibilante do adjectivo imensa
que, por contraste, sublinha as duas ideias que agora avultam: a vibração do
ar, dada pelo valor semântico do verbo vibrar, colocado no início do
verso, e a sua concretização fonética na aliteração das vibrantes "Vibra
(...) claridade crua"; e a crueza do ar, transmitida explicitamente no
adjectivo crua e, implicitamente, na aliteração das guturais em
"claridade crua".
É realçado, deste modo, o dia frio, mas com ar limpo pelas chuvas caídas e um sol de inverno que, na sua
"claridade crua", deixa ver com nitidez todos os pormenores da
realidade, estimulando a observação.
A primeira coisa que prende a
atenção do poeta são os calceteiros, quer pela sua posição ("de
cócoras"), quer pela ocupação do espaço visual ("em linha, "de
lado a lado, da "longa rua").
Ainda, em apontamentos breves,
repara em algumas características destes elementos humanos ("terrosos e
grosseiros") e no modo como a acção por eles realizada -
"calçam" - é levada a cabo: "com lentidão".
De notar, nestes três últimos
versos, o predomínio de sons líquidos, guturais e sibilantes, podendo-se formar
dois grupos: por uma parte, "em linha", com lentidão", "de
lado a lado a longa" e, por outra, "de cócoras", "os
calceteiros" "terrosos e grosseiros" "calçam".
Estes dois grupos de sintagmas
cruzam-se em linhas sinuosas, donde se destacam três impressões: a lentidão, a
posição e a rudeza dos calceteiros que têm a aliteração dos sons laterais,
sibilantes e guturais, respectivamente, a sublinhar aqueles três aspectos.
As referências ao tempo
meteorológico são iterativas.
A 1ª estrofe põe em evidência dois
aspectos deste elemento: o frio e a claridade, que podem
encontrar-se perfeitamente discriminados se agruparmos as expressões "Sol
descoberto", "manhã bonita" e "bom tempo", por um lado,
e "rude mês", "frio" e "friagem", por outro,
sendo "Dezembro enérgico", precedido do deítico este, a
expressão que sintetiza e explicita todas as referências anteriores, assim como
a sua função no poema: de observação
(1ª estrofe); de movimento (2ª
estrofe) e de estímulo dos sentidos (10ª
e 11ª estrofes).
Estas três funções realizam-se
permanentemente ao longo do poema: é através do olhar que o poeta observa a
realidade que o rodeia, dando-nos pormenores como o tipo de ferramentas e
vestuário dos calceteiros ou a característica das suas barbas (estrofes 5 e 6);
a maneira de andar das peixeiras e da actriz ou o tipo de calçado desta última.
O sentido da audição está também ao
serviço desta observação, transmitindo-nos um mundo mais real porque também
constituído de sons: é o grito das peixeiras, o som produzido pelo trabalho dos
calceteiros e o assobio de dois deles.
O movimento exigido pela
"frialdade" está presente em todos os elementos que o olhar, ora
pormenorizado, ora abrangente do poeta pode captar: os calceteiros calçam,
partem, batem, descalçam, tiram o nível, cospem, encaram a actriz, assobiam; as
peixeiras dão aos rins; a actriz surge, desemboca, caminha, vacila, hesita,
arrisca-se, atravessa; e o próprio poeta caminha em direcção aos calceteiros,
tendo em frente a barroca donde sai a actrizita.
Esta deslocação do poeta no espaço
observado, só aparece explícita na estrofe 12: "um pára enquanto eu
passo".
Mas já na estrofe 6, nos apercebemos
da sua aproximação em relação aos calceteiros porque só assim se explica que
ele consiga distinguir desde o tipo de tecido dos barretes à espessura dos
forros, o que, por sua vez, confirma o aspecto geral ("terrosos e
grosseiros") já apercebido na 1ª estrofe quando o poeta tem uma vista
global da rua e das suas personagens ("calçam de lado a lado a longa rua").
Por seu lado, a actriz caminha na
direcção oposta, cruzando-se, primeiro, com o poeta e, depois, com os
calceteiros: primeiro, o poeta vê-a surgir ao longe "ao cimo da
barroca" e desembocar na rua. Na estrofe 18, cruzam-se, visto o poeta poder
reparar em pormenores como o queixo ou o "tiritar" de frio da actriz.
É de notar o contraste entre o
movimento rápido da actriz ("atravessa", "depressa") ou o
das peixeiras ("que a marcha agita") e o movimento lento dos
calceteiros ("com lentidão", "morosos", "com um ar
ralaço e manso", "bovinos").
É sobre o sujeito poético que o
tempo meteorológico exerce a sua acção de estímulo dos sentidos (estrofes 10 e
11) e o leva para o campo da fantasia: "sabe-me a campo, a lenha, a
agricultura", contrastando com a realidade presente: " E engelhem,
muito embora, os fracos, os tolhidos". A concessiva marca esta diferença
e, ao mesmo tempo, o abandono do poeta aos seus próprios sentidos.
Esta passagem da realidade para o
sonho e fantasia já se havia verificado nas estrofes 7,8 e 9 onde "o frio
- o grande agente!" leva o poeta a evocar, espontaneamente, imagens de
domínios diferentes das da realidade presente. Assim, às "árvores
despidas" sobrepõem-se os navios fundeados; à lentidão e ao chiar dos carros
de mão sobrepõe-se uma cidade nórdica caracterizada pela azáfama; e aos charcos
do chão sobrepõem-se "lagoas de brilhantes".
A partir da estrofe 12, momento em
que o poeta passa junto dos calceteiros, a realidade captada objectivamente
através dos sentidos deixa de ser ponto de partida para a evasão no mundo da
fantasia para passar a ser exclusivamente objecto de reflexão e comentário,
isto é, comportamentos puramente racionais e intelectuais.
Para melhor se compreender a relação
entre a atitude do eu poético e a situação em cena das personagens principais,
observe-se o esquema em anexo.
Verificamos, então, que os
calceteiros, além de estarem presentes ao longo de todo o poema, são o elemento
menos dinâmico desta movimentação, quer por serem o fulcro da paisagem, quer pela
lentidão dos seus gestos.
É na estrofe 12 que o poeta se cruza
com os calceteiros, confirmando o seu aspecto rude ("mal encarado e
negro") e a lentidão dos movimentos ("com um ar ralaço e
manso"). De realçar que estes dois aspectos, já referidos, são
atribuídos às circunstâncias do trabalho. Eles são "morosos" porque
as ferramentas de trabalho, os maços, "pesam enormemente"; "a
coluna nunca se endireita" porque o calceteiro passa a maior parte do
tempo dobrado sobre si, partindo penedos, batendo a "calçada feita";
são "duros, baços" porque o trabalho é rude, desde os instrumentos de
trabalho à matéria que transformam - os penedos.
Esta constatação leva o poeta a
exercer juízos de valor sobre a realidade que tem, agora, tão perto de si. Deste
modo, nas duas estrofes seguintes, sucedem-se as exclamações onde predominam a
comparação, a imagem e a metáfora ao serviço da denúncia do sofrimento do "Povo!", e da consequente revolta experimentada pelo
poeta.
Finalmente, aparece a actriz que vai
ser pintada alternadamente com os calceteiros, donde resulta um contraste entre
o aspecto destas duas personagens: de um lado, os "Homens de carga",
"as bestas", e do outro, "uma figura fina" de "queixo
hostil, distinto"; de um lado avultam "os dorsos, os costados como
lajões", do outro, "um perfil direito que se aguça"; e ainda
"bovinos, másculos, ossudos" eles e "furtiva" ,
"impaciente", demonico" ela.
Temos, então, a lentidão, a posição
e a rudeza dos calceteiros a opor-se ao andar rápido, ar esguio e aspecto fino
da actriz. Depois de ter feito uma primeira descrição da actriz, o poeta, na
estrofe 16, mostra o seu espanto por a encontrar, de dia e naquele sítio, já
que é de noite e no teatro, portanto no centro da cidade, que ela se deixa ver
e até atrair.
Na estrofe 18, a expressão
"Espanta-me" sintetiza estes pensamentos, agora, sobre a actrizita
e não a actriz. Este diminutivo revela, ao mesmo tempo, carinho e
pena. Carinho que já havia demonstrado "à noite na plateia" e pena
por a encontrar num quadro adverso, isto é, "Neste Dezembro enérgico,
sucinto / E nestes sítios suburbanos, reles!", que contrastam com o
interior aquecido de um teatro no centro da
cidade.
Por seu lado, o facto de a actriz se
deixar atrair, embora fingidamente ("os olhos lisos como polimento"),
contraria a sua atitude presente ("Furtiva" de "queixo hostil,
ddistinto"), o que a adversativa Mas, no início da estrofe, faz
realçar.
Outra adversativa aparece no início
da última estrofe, agora a marcar a representação que a actriz continua a fazer
mesmo fora do palco, onde as atitudes são outras por a situação ser outra
também. Isto é, tanto o seu aspecto como as suas atitudes são uma máscara que a
actriz nunca tira.
Quanto aos calceteiros, "filhos
das lezírias, dos montados" caracterizados pelo seu aspecto altivo ("aprumados")
e enérgico ("trepadores") deixaram de ser "os bons
trabalhadores" para serem "bestas de carga" sobre os quais o
tempo atmosférico não exerce influência nenhuma. O aparecimento da actriz
acicata-lhes os impulsos sexuais, mas continuando ao nível da animalidade, sem
recobrar as qualidades antigas.
Podemos, portanto, concluir que a
cidade, nos seus dois espaços característicos - o centro e o subúrbio - é
habitada por gente trabalhadora de dois tipos: a que põe a máscara e a que
perdeu as suas qualidades nobres.
E esta cidade tem um nome - Lisboa -
diferente das cidades do Norte (estrofe 8).
Encontramos, neste poema, elementos
próprios da narrativa, através dos quais o poeta tenta transmitir a realidade e
a sua objectividade. São eles as personagens e a acção que têm como pólos de
unidade o tempo atmosférico e cronológico ("Neste Dezembro enérgico,
sucinto") e o espaço ("Nestes sítios suburbanos, reles").
De realçar a repetição do deítico estes
a dar o aqui e agora do momento vivido pelo poeta e que ficou fixado de forma
breve, resumida ("sucinto") nestas Cristalizações.
Ao serviço da objectividade e da
realidade crua que nos descreve está ainda o concretismo do vocabulário e as
sensações ao serviço da apreensão do que o rodeia. Esta realidade assim
apercebida é, por vezes, interceptada pelo sonho e pela fantasia e, por fim,
pelo raciocínio e juízos de valor.
Podemos considerar este um processo
inovador na nossa literatura que, mais tarde, foi aprofundado e teorizado,
sobretudo, por Fernando Pessoa - que, não nos esqueçamos, considerava Cesário
Verde seu mestre -, nos -ismos nossos conhecidos: interseccionismo,
sensacionismo e, até, futurismo.
ESQUEMA DA MOVIMENTAÇÃO DAS PERSONAGENS NO
ESPAÇO
→
Poeta
________________________________________________________
(est.
1 - 5) Calceteiros
→ Poeta
________________________________________________________
(est.
6 - 11) Calceteiros
→
Poeta
________________________________________________________
(est.
12 - 14) Calceteiros
→ Poeta
________________________________________________________
(est.
15 - 17) Calceteiros ←Actriz
→Poeta
________________________________________________________
(est.
18) Calceteiros ←Actriz
Poeta
________________________________________________________
(est.
19 - 20) ← Actriz
Calceteiros
__________________________________________________________________
De tarde
Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!
Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,
Desciam mais atrás, malhadas e turinas.
Do seio do lugar - casitas com postigos -
Vem-nos o leite. Mas batizam-no primeiro.
Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!
Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!
E os fartos animais, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu "costume de percale".
Já não receias tu essa vaquita preta,
Que eu seguirei, prendi por um chavelho? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!
Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,
Desciam mais atrás, malhadas e turinas.
Do seio do lugar - casitas com postigos -
Vem-nos o leite. Mas batizam-no primeiro.
Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!
Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!
E os fartos animais, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu "costume de percale".
Já não receias tu essa vaquita preta,
Que eu seguirei, prendi por um chavelho? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!
Cesário
Verde
COMENTÁRIO
O texto
transcrito pertence ao único livro publicado após a morte de Cesário Verde. Reúne
um conjunto de poemas cujo principal tema é o da oposição cidade / campo.
O poema “De tarde” deixa transparecer a preferência de
Cesário Verde pelo campo, espaço de vivências infantis, de vida rural e
salutar.
Estas cinco estrofes têm uma regularidade métrica
(alexandrinos), estrófica (quadras), rimática (cruzada e emparelhada – ABBA) e
de ritmo (binário), o que denota uma preocupação pela perfeição formal, própria
do Parnasianismo.
A primeira quadra começa, inesperadamente, por nos dar o
estado de espírito de duas personagens – o sujeito poético e a sua companheira
– que foram protagonistas de um episódio, já passado, (“Nesse tempo”) e de que
só, na última quadra, nos é dito qual a sua causa.
Deste modo, o poeta parece querer pôr em evidência a
reacção que ambos tiveram perante a situação descrita, começando e acabando o
poema com este mesmo assunto.
A reacção
é precisamente a oposta entre eles. Esta oposição é sublinhada pelas antíteses
entre os adjectivos que qualificam as duas personagens: ela “mais morta do que
viva”, ele “destro e bravo” e, na última estrofe, entre as formas verbais dos
verbos recear e tremer, referidas a ela e dos verbos segurar e prender que
denotam a força e valentia dela.
Esta valentia é também dada logo na primeira estrofe e do
mesmo modo através da comparação entre dois termos antitéticos (“rapazito” /
“homenzarrão”), de que os sufixos diminutivo –ito e aumentativo –arrão fazem
sobressair o contraste entre o aspecto físico, exterior e o psicológico.
A antítese presente em “mais morta do que viva”, posta em
evidência pela inversão verificada neste primeiro verso do poema, sublinha o
medo hiperbólico que a companheira do poeta sentiu, o que é confirmado no
último verso do poema com o adjectivo “medrosa”.
Este adjectivo, por sua vez, entra em contraste com
“fina, de luneta”, o que realça, de igual modo, a oposição entre o aspecto
exterior e o seu estado psicológico.
É, sobretudo, nestes contrastes que nos apercebemos da
clara dicotomia que o poeta faz entre a cidade e o campo: a cidade produz
pessoas apenas preocupadas com a aparência (“costume de percale”; “fina, de
luneta”) e que já não se sentem bem em contacto com a natureza.
Na terceira estrofe, além da referência realista ao
trabalho duro do leiteiro (verso 11), o vocativo “amigos!” carrega alguma
ironia crítica aos citadinos que, além de não darem valor a esse trabalho duro,
ainda se sentem incomodados com quem os serve (verso 12).
Além desta marca realista, é de notar o carácter
naturalista com que o poeta descreve o campo: os substantivos concretos apenas
são adjectivados para descrever com maior precisão e objectividade o que vê
(bezerrinhas brancas”; “largas ancas”), conforme vai deambulando, dando “um
giro pelo vale”.
Mas a realidade chega ao sujeito poético também através
doutros sentidos, a revelar a influência do impressionismo na poesia de
Cesário: “pregão”; silêncios vastos”; “roçavam”.
Por fim, é de notar o tom prosaico e até coloquial deste
poema mas que nos transmite uma reflexão mais profunda sobre duas realidades
opostas (cidade / campo) e que se mantiveram ao longo da vida do poeta. Nesta
composição, esta duração no tempo é dada pelo presente do indicativo da última
estrofe, que situa o sujeito poético no presente, com a mesma opinião sobre o
acontecimento relatado.
______________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
O
céu, de opacas sombras abafado,
Tornando
mais medonha a noite fea,
Mugindo
sobre as rochas, que saltea,
O
mar, em crespos montes levantado;
Desfeito
em furacões o vento irado;
Pelos
ares zunindo a solta area;
O
pássaro nocturno, que vozea
No
agoireiro cipreste além pousado;
Formam
quadro terrível, mas aceito,
Mas
grato aos olhos meus, grato à fereza
Do
ciúme e saudade, a que ando afeito,
Quer
no horror igualar-me a Natureza;
Porém
cansa-se em vão, que no meu peito
Há
mais escuridade, há mais tristeza.
Bocage
COMENTÁRIO
[INTRODUÇÃO]
Manuel
Maria Barbosa du Bocage destaca-se na nossa literatura, sobretudo, através do
soneto onde se misturam o temperamento romântico com a herança formal dos arcádicos.
O
academicismo, a imitação dos antigos, embora com originalidade, defendidos pela
Nova Arcádia é, em larga medida, ultrapassado, em Bocage, pela consciência
agida da personalidade, traduzida num individualismo que há-de ser bandeira dos
românticos.
[ESTRUTURA EXTERNA]
Este
poema tem a estrutura própria do soneto: duas quadras seguidas de dois
tercetos, em verso decassilábico, e com rima emparelhada e interpolada nas
quadras e cruzada nos tercetos.
[ESTRUTURA INTERNA]
Divide-se
em duas partes: a primeira constituída pelas duas quadras (em que o poeta
descreve uma realidade exterior a ele) e metade do 1º verso do 1º terceto que
sintetiza e integra os elementos descritos; a segunda parte engloba os dois
tercetos onde o eu poético é posto em evidência.
Esta 2ª
parte está articulada à 1ª através da adversativa mas que relaciona a
objectividade aparente da 1ª parte com a subjectividade real da 2ª parte.
Podemos,
ainda, subdividir a 2ª parte no 1º terceto, onde se constata o comprazimento
por parte do poeta na contemplação da Natureza descrita e, no 2º terceto, em
que o poeta afirma que a Natureza não consegue superar em horror o seu estado
de espírito.
Esta
estrutura é dinâmica pois estas partes vão modelando, até ao final, o tema.
[TEMA]
A dor de
um amor perdido
[ANÁLISE]
Na 1ª
parte, os substantivos concretos (céu, noite, mar, rochas, vento, areia,
pássaro, cipreste) constituem os elementos da Natureza descritos. Esta Natureza
é apresentada no seu mais extremo dinamismo: uns elementos agindo sobre os
outros com "fereza". Assim, o céu exerce a sua acção sobre a noite, o
mar sobre as rochas, o vento sobre a areia e o pássaro sobre o cipreste. Os
termos estabelecedores desta relação são formas verbais (tornando, mugindo,
zunindo, vozea, saltea), sendo os dois últimos equivalentes a vozeando e
saltando, todos, portanto, com o valor de gerúndio, o que dá a ideia de
continuidade a que se acrescenta o exagero significativo dos vocábulos
escolhidos.
Os
adjectivos (opacas, abafado, medonha, fea, crespos, irado, solta, nocturno,
agoireiro) transmitem o sentimento de "escuridade " e "tristeza"
de que o poeta irá falar já no fim do poema.
O
predomínio de adjectivos e a animização que resulta do emprego do termo irado,
conferem um carácter de falsa objectividade a esta parte.
De
realçar, ainda, a construção nominal de todas as frases, o que dá a violência
do quadro.
As
convulsões da natureza repercutem-se nas inversões e hipérbatos da própria
frase.
Na 2ª
parte, chama logo a atenção as três conjunções adversativas: duas de mas no
1º terceto e porém no 2º.
Na
realidade, toda esta parte se opõe à primeira: os substantivos que eram
concretos são, agora, predominantemente abstractos (fereza, ciúme, saudade,
horror, escuridade, tristeza) a sublinhar o estado de espírito do sujeito poético e, portanto, a
sua subjectividade; a construção nominal dá lugar a uma construção verbal
(formam, aceito, ando, quer, igualar-me, cansa.se, há) cujos verbos, no
presente do indicativo, nos dão a ideia de permanência, hábito, portanto, a
sublinhar a expressão "a que ando afeito"; aparece, apenas, um
hipérbato no 1º verso do 2º terceto, e uma inversão no 2º verso do 1º terceto,
de resto a frase á linear, o que nos dá a sensação de acalmia, uma calma própria da "escuridade" e
"tristeza" que se seguiu à tempestade descrita na 1ª parte do poema.
No 2º
terceto, o substantivo horror é posto em evidência, quer pela sua
posição na frase, quer pela repercussão sonora do som /r/ que se estende a toda
a frase e vai ecoar no último verso, sublinhando, ainda mais, a hiperbolização
do estado de espírito do sujeito poético. Esta hiperbolização tem, além disso,
ao seu serviço, as repetições intensificadoras, conseguidas com as adversativas
e com o advérbio de quantidade mais.
[CONCLUSÃO]
Nota-se,
neste poema, uma visão hiperbólica, quer da paisagem tempestuosa, quer dos
sentimentos, através do recurso ao hipérbato, ao vocabulário estarrecedor e às
repetições intensificadoras de sentido.
A
paisagem denota o gosto pelo nocturno e o fúnebre, isto é, pelo horrendo.
Os
sentimentos de medo e de dor que normalmente são evitados, aqui são assumidos
conscientemente.
É a
vitória da expressão hiperbólica sobre a sobriedade dos moldes antigos; do
"locus horrendus" sobre o "locus amoenus"; é, finalmente, o
triunfo do individualismo, do egocentrismo, que põe a natureza ao serviço dos
sentimentos do eu poético, isto, é, como seu reflexo.
Um mover
d'olhos, brando e piadoso
Sem ver de
quê; um riso brando e honesto,
Quasi
forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer
alegria duvidoso;
Um despejo
quieto e vergonhoso;
Um repouso
gravíssimo e modesto;
Uma pura
bondade, manifesto
Indício da
alma, limpo e gracioso;
Um encolhido
ousar; ua brandura;
Um medo sem
ter culpa; um ar sereno;
Um longo e
obediente sofrimento;
Esta foi a
celeste fermosura
Da minha
Circe, e o mágico veneno
Que pôde
transformar meu pensamento.
Luís de Camões
COMENTÁRIO
[Introdução]
O novo movimento literário,
artístico e filosófico que despontou em Itália em finais do séc. XIV teve, em
Portugal, no séc. XVI, um dos seus maiores expoentes no campo da literatura: Luís
de Camões.
O Amor, tema que dominava a nossa
literatura desde as Cantigas de Amigo, continua a ter lugar de destaque no
conjunto da obra lírica de Camões, composta, sobretudo, por sonetos, a medida
nova ou estilo novo, de origem italiana.
Neste soneto, o poeta pinta-nos o
retrato da mulher amada, sem recorrer às imagens poéticas convencionais desta
época literária (pedras preciosas e semi-preciosas), e por ele utilizadas
noutros sonetos-retratos.
[Tema]
Sedução da beleza espiritual de uma
mulher.
[Estrutura
externa]
A estrutura estrófica é a de um
soneto (2 quadras e 2 tercetos) em versos decassilábicos, com o esquema
rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, implicando um transporte de rima da 1ª quadra
para a 2ª e do 1º terceto para o 2º.
[Estrutura
interna]
Este soneto divide-se em duas
partes, ligadas pelo pronome demonstrativo esta.
A primeira parte tem uma estrutura
estática, não presentando nenhum avanço temático. Apenas retrata uma mulher,
através de sintagmas nominais, separados pelo ponto e vírgula.
A segunda parte é progressiva em
relação à primeira porque desenvolve a nota temática, acrescentando-lhe
intensidade, quer através da síntese dos aspectos descritos, introduzindo dados
inesperados como Circe e mágico veneno, quer ainda pela referência
ao efeito produzido no espírito do poeta.
[Análise]
Na 1ª quadra, as expressões do rosto
- "mover d'olhos", "riso" e "gesto" - denotam
qualidades psicológicas ("brando", "doce") e morais
("piadoso", "honesto", "humilde"). Os sintagmas
que completam cada uma das frases e que são transpostos para os versos
seguintes fazem realçar as características apontadas - piedade, humildade e
timidez.
Na 2ª quadra, as atitudes - despejo
e repouso - reflectem, igualmente, a psicologia ("quieto",
"gravíssimo") e a moral ("vergonhoso", "modesto")
da mulher descrita.
Os dois últimos versos desta estrofe
põem em evidência uma qualidade moral - bondade -, produto da maneira de ser
("manifesto indício da alma").
O 1º terceto confirma os aspectos
descritos anteriormente: o oxímoro "um encolhido ousar" repete a
contradição existente em "um despejo quieto e vergonhoso"; "uma
brandura", qualidade de quem é agradável, carinhoso, relaciona-se com toda
a 1ª quadra onde os adjectivos brando e doce veiculam aqueles
significados; "um medo sem ter culpa" exprime, ao mesmo tempo,
bondade e timidez; "um ar sereno" resume a aparência geral, resultado
da conduta que, por sua vez, é consequência natural da maneira de ser desta
mulher.
No último verso deste terceto, o
substantivo sofrimento, na acepção clássica do termo, significa
tolerância, paciência, atitudes próprias do tímido que se submete docilmente ao
que o rodeia, sem se impor. Por isso, é obediente, obediência que se mantém
("longo") porque é inerente ao seu perfil psicológico.
O predomínio dos adjectivos e
substantivos conferem a esta 1ª parte um carácter estático, próprio de um
quadro (pintura de uma mulher) que se contempla.
Os substantivos, na sua maioria,
abstractos, ajudam a realçar a essência psicológica desta mulher, por vezes
expressa através de frases com termos contraditórios entre si, o que revela a
impossibilidade de definir o que é indefinível, facto para o qual o sujeito
poético chama a atenção, iniciando cada frase e verso com um artigo indefinido.
Esta anáfora é o elemento que dá
unidade às três primeiras estrofes, formadas, apenas, pela justaposição de
sintagmas nominais, o que indicia uma tenção, uma emotividade que, subitamente,
vão ser explicadas no último terceto.
Essa emotividade já sentida, mas ainda
contida, é traduzida, na 2ª parte, numa maior expansão expressiva, com a frase
a desdobrar-se pelos 3 versos da estrofe, e no discurso pessoal evidenciado
pelos pronomes minha e meu.
Os indefinidos constantes na 1ª
parte são substituídos pelas definições "a celeste fermosura"
e " o mágico veneno" que, por serem conceitos antitéticos
entre si, não resolvem a indefinição inicial, antes sintetizam o retrato da
mulher amada numa única realidade: Circe.
Por outro lado, os artigos
definidos, juntamente com o possessivo minha indicam proximidade (no pensamento)
do poeta com esta mulher.
O demonstrativo esta
substitui todas as frases nominais anteriores, estando, portanto, ao serviço
daa síntese e da ideia de aproximação já referidas. É também o sujeito da única
frase verbal do poema.
Os verbos, no pretérito perfeito,
indicam uma acção já realizada completamente. Por isso, no presente, o poeta
está a sofrer o poder da acção exercido pela Circe, expresso pela perifrástica
"pôde transformar" em vez de transformou.
Temos,
assim, um contraste nítido entre o retrato de uma serenidade duradoira
(presente implícito na 1ª parte) e o retrato de um indivíduo completamente
virado do avesso como resultado (pretérito perfeito da 2ª parte) daquele poder
que nenhuma outra mulher conseguiu ter sobre o poeta.
[Conclusão]
O olhar, o riso e o gesto brandos
são aspectos exteriores da mulher ideal do período renascentista. Contudo,
neste poema, predominam adjectivos que indicam características espirituais que,
pela sua beleza, conseguiram enfeitiçar o poeta.
Camões, tal como Petrarca já havia
feito, parece mais interessado em ir além das aparências físicas e desvendar o
mundo interior da mulher, o que está, sem dúvida, em sintonia com a exaltação
do Homem como ser único e individual, uma das principais características da
maneira de ver o mundo deste período da nossa História.
_____________________________________________________________
Senhora,
partem tam tristes
meus
olhos por vós, meu bem,
que
nunca tam tristes vistes
outros
nenhuns por ninguém.
Tam
tristes, tam saudosos,
tam
doentes da partida,
tam
cansados, tam chorosos,
da
morte mais desejosos
cem
mil vezes que da vida.
Partem
tam tristes os tristes,
tam
fora d'esperar bem,
que
nunca tam tristes vistes
outros
nenhuns por ninguém.
Joan
Roiz de Castell-Branco
COMENTÁRIO
[Introdução]
João
Rodrigues de Castelo-Branco é um dos 286 autores contemplados no Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende que constitui o mais precioso documento da nossa
literatura do séc. XV.
Este
Cancioneiro expressa o carácter fútil de uma poesia destinada a entreter os
cortesãos do Paço. Os temas são, em grande parte, os do amor cortês, glosado,
muitas vezes, através de simples jogos de palavras, vazios de conteúdo.
Revela-nos, no entanto, alguns poetas de maior qualidade como este nosso autor
que conseguem apurar a forma e apelar à emotividade.
[Estrutura externa]
A
estrutura externa é própria da cantiga com um mote de 4 versos e uma glosa de
9, repetindo-se os dois últimos versos do mote no fim da glosa.
A
métrica é de sabor popular - redondilha maior.
A rima
do mote é cruzada, alternadamente grave e aguda. Na glosa, repete-se o tipo de
rima do mote nos últimos 4 versos, pois as palavras finais são as mesmas,
apesar de só se repetirem, integralmente, os dois últimos versos. Nos restantes
versos da glosa, há um aproveitamento dos diferentes tipos de rima, mantendo-se
constante o acento grave.
[Estrutura interna]
A
estrutura interna do poema está em perfeito acordo com a estrutura externa: é
contínua já que há uma glosa ao mote e é circular por se repetir, no fim, os
dois últimos versos do mote.
[Tema]
O tema é
o da tristeza causada pelo afastamento em relação à mulher amada.
[Análise]
Como
sempre, no mote, são apresentadas as ideias dominantes do tema que, nesta
composição, se podem dividir em duas, tantas quantas as orações desta quadra:
- A
oração principal, constituída pelos dois primeiros versos, é iniciada por um
vocativo aristocrático "Senhora" que, se por um lado, estabelece de
imediato uma situação de comunicação directa entre o sujeito poético e esta
mulher, por outro, essa comunicação é feita em termos de vassalagem por parte
do emissor. Assim, o aposto "meu bem" revela um amor casto que só
pode ser traduzido discretamente através da expressão dos olhos: "tam
tristes / meus olhos". Esta tristeza tem como causa o afastamento do poeta
("Partem") da mulher amada, o que a torna mais inacessível e
distante.
- A
segunda oração expressa a consequência destes factos: através da repetição do
advérbio de intensidade Tam e das formas negativas nunca, nenhuns,
ninguém, acentua-se a hiperbolização e a singularidade daquela tristeza.
Temos,
portanto, como tema a imensa e singular tristeza causada pelo afastamento do
poeta em relação à mulher amada.
Este
sentimento é glosado pelos adjectivos tristes, saudosos, doentes,
cansados e chorosos que culminam, na sua sequência ascendente de
intensidade, na expressão de um comparativo de superioridade: "da morte
mais desejosos / cem mil vezes que da vida".
A
natureza semântica destes adjectivos revela um amante essencialmente
espiritual, cujo sofrimento se torna mais patente pela colocação do temo morte
no início do verso e pela utilização da expressão hiperbólica "cem mil
vezes".
"Partem
tam tristes os tristes" é uma repetição parcial do primeiro verso do mote
que tem por sujeito já não o substantivo concreto olhos, subentendido
também nos versos anteriores da glosa, mas o adjectivo substantivado tristes.
Isto é, há uma redução gradual do eu ao seu próprio estado de espírito:
primeiro, olhos em vez de eu; segundo, olhos subentendidos
para pôr em evidência as suas qualidades; finalmente, tristes em vez de olhos.
Esta focalização no sentimento experimentado é confirmada pela repetição do
mesmo termo - tristes - não só ao longo do poema, mas ainda neste mesmo
verso, embora com funções sintácticas e categorias morfológicas diferentes.
"Tam
fora de esperar bem" é uma explicação complementar da causa da tristeza
presente e futura: a separação a que o poeta é obrigado leva-o a perder toda a
esperança ("Tam fora d'esperar") de encontrar a satisfação espiritual
plena ("bem").
O jogo
de palavras conseguido entre os termos bem do mote e bem da glosa
diz-nos que é aquela Senhora a única fonte desta satisfação e, por
conseguinte, não poderá haver outra. Daí, a repetição da oração consecutiva do
mote a fechar o poema, confirmando a nota temática da tristeza profunda e ímpar
sentida pelo poeta.
[Conclusão]
O facto
de, com a partida, perder a possibilidade de ver a mulher amada é causa da
tristeza que percorre todo o poema.
O leitor
é contagiado por um ritmo pautado pelo advérbio tam a sugerir, talvez, o
bater do coração e pela repetição dos fonemas [ ] e [ Z ] a sublinhar o choro, o desalento,
a tristeza sem par.
O termo olhos,
apesar de só uma vez explícito, é a palavra-chave do poema quer pela sua
omnipresença, quer pelo seu valor axial: olhos = tristeza.
Esta
composição insere-se na temática predominante da poesia trovadoresca de
inspiração provençal - a coita de amor - tão repetidamente trabalhada no
Cancioneiro Geral. No entanto, o grande artifício poético que, tantas vezes,
escondia um amor superficial e, outras tantas, fingido, é posto, nesta
composição, ao serviço da expressão de um sentimento profundo, de uma paixão
que parece sinceramente sentida, conseguindo apelar à emotividade do leitor.
__________________________________________________________________
Só a Arte tem o poder
De a todos
nós transmitir
O
que todos podem ver
Mas
poucos sabem sentir.
Dom de Artista tem quem cria
Obras de
arte: esse é artista,
Como
não é quem copia
Aquilo
que tem à vista.
Nada direi, mas, enfim,
Vou ter a
grande alegria
De
a Arte dizer por mim
Tudo
quanto eu vos diria.
Mágoas descritas em verso,
Quando
nascem de almas sãs,
Percorrem
todo o Universo
Falando
às almas irmãs.
António Aleixo
COMENTÁRIO
Este
poema está constituído por quatro quadras, em redondilha maior e com rima
cruzada em todas as estrofes. Além destes aspectos formais, podemos, ainda,
verificar o encavalgamento entre todos os versos de cada uma das quadras, o
que, por um lado, constitui uma característica da poesia popular e, por outro,
contribui para fazer de cada estrofe uma unidade de significação com valor
semântico próprio, podendo, cada uma delas, ser lida como um todo.
No
entanto, o termo "Arte", presente nas três primeiras quadras, assim
como o primeiro verso da última estrofe que explica e particulariza o campo da arte
("em verso") referida, funcionam como elementos de ligação entre as
quatro estrofes, formando, assim, uma unidade maior de significação que é todo
o poema.
Deste
modo, podemos considerar haver uma estrutura contínua, formada pelo encadeamento
de quatro partes semânticas complementares entre si, porque as ideias expressas
na primeira estrofe são retomadas nas seguintes, num crescendo quanto a
quantidade de informação temática.
Assim, o
tema da Arte como único meio de comunicar sentimentos está expresso em todas e
cada uma das estrofes.
A ideia
de comunicação é logo dada no segundo verso pelo verbo "transmitir";
na terceira estrofe, com a repetição do verbo dizer ("direi";
"dizer"; "diria"), reforçado pelo tom coloquial ("mas,
enfim") e pelo discurso pessoal com o receptor num "vos";
finalmente, na última quadra, com o gerúndio do verbo falar ("falando")
a estabelecer ligação entre as "almas sãs" e as "almas
irmãs".
Por
outro lado, o modalizador "só" confere um cariz único e peculiar à
"Arte" que é o de transcender o próprio artista ("De a arte
dizer por mim / Tudo quanto eu vos diria"), estando para além do seu
presente (futuro em "Nada direi"
e "Vou ter a grande
alegria").
A
"Arte" comunica sentimentos ("sentir"; "Mágoas")
que são "Tudo quanto eu vos diria". Deste modo, o sujeito poético
assume-se como Artista, como aquele que "não copia aquilo que tem à
vista", que escreve "em verso", e que é, portanto, apenas o
canal duma situação de comunicação, o veículo através do qual a Arte se
realiza, mesmo que o poeta não se esforce ("Nada direi").
As
primeira, segunda e quarta estrofes têm em comum os verbos no presente do indicativo,
com frases declarativas, a conferir um carácter aforístico, universal, a todas
as afirmações.
Assim, o
tom pessoal, que só aparece na terceira estrofe, é esbatido nas restantes onde
se estabelece, na primeira quadra, uma relação Arte - nós (poucos); na
segunda quadra, define-se o artista e o não artista, sendo a última
estrofe a explicitação e a síntese daquelas duas ideias: a "Arte" são
"Mágoas descritas em verso"; o “Dom de Artista" está nas
"almas sãs" onde podemos incluir o "eu" da terceira
estrofe; os dois últimos versos remetem para a dicotomia "todos podem
ver" / "poucos sabem sentir".
Podemos,
ainda, constatar o facto de as três primeiras estrofes terem como núcleo
significativo uma antítese com a adversativa "mas" a separá-las, nas
primeira e terceira estrofes, e a partícula comparativa "como", com o
mesmo valor adversativo, na segunda estrofe. Assim, na primeira estrofe,
"todos" opõe-se a "poucos"; na segunda, "artista"
a "não" artista; na terceira, "Nada" a "Tudo".
Estes pares antitéticos, se articulados verticalmente, darão o seguinte esquema
semântico: todos - não artista - nada; poucos - artista - tudo. Na última
estrofe, a dicotomia todos-poucos está presente, de forma mais subtil,
em "Todo o Universo" - "almas irmãs", preferindo, o poeta,
realçar a comunicação, a identificação (rima pura) entre as "almas
sãs" e as "almas irmãs".
Este
poema, pelas características formais apontadas, pode ser classificado de
popular. No entanto, afasta-se desse padrão, quer pelo conteúdo, quer pela
riqueza da rima.
Temos,
aqui, uma certa concepção de poesia, numa formulação de tipo geral, filosófico,
que transcende o circunstancial, o que juntamente com um vocabulário simples
faz lembrar algumas poesias de Fernando Pessoa como Autopsicografia e Isto.
Ainda a rima aguda e pobre, na primeira estrofe; grave e pobre, na segunda;
alternadamente, aguda e grave e sempre rica, na terceira estrofe; e, de novo,
alternadamente grave e aguda e sempre pobre na quarta estrofe, a par de um
número constante de sílabas métricas (sete) conferem a este texto uma qualidade
literária já reconhecida.
António
Aleixo é, sem dúvida, mais que um poeta popular que, e segundo o seu amigo
Joaquim Magalhães, tem "uma correcção de linguagem e, sobretudo, uma
expressão concisa e original de uma amarga filosofia" que o dista, em
muito, dos poetas populares algarvios, como se pode comprovar pelo exemplo
recolhido do Ti Jaquim, na serra algarvia, em 1987 e que se transcreve a
seguir.
À LUA NINGUÉM PODE CHEGAR
Eles dizem que foram à lua
E eu não quero acreditar
Eles não foram nem
chegam a ir
Lá ninguém pode chegar.
Anda muita família
errada
No território do
Ocidente
Há no mundo muito
experiente
Mas sobre isso não sabe
nada
Primeiramente diz que
era habitada
E cada um despacha a sua
Ela alumeia em casa e na
rua
E desaparece a claridade
Da mentira fizeram
verdade
Eles dizem que foram à
lua
Pois ela é nova e cheia
Vai correndo o destino
que tem
E falam pr’à i também
Que há lá pedras e areia
Já trouxeram uma mão
cheia
Segundo se ouve falar
Os aparelhos estão a
anunciar
Palestra da mais
inferior
E seja que motivo for
Eu não quero acreditar.
Há quem tenha essa
ilusão
Juntamente uma grande
alegria
Pelo modo como acusa na
telefonia
E várias vezes na
televisão
Tem acusado em toda a
nação
Que até dá gosto ouvir
Pois só sabem é mentir
E assim iludem o freguês
Ainda digo mais outra
vez
Eles não foram nem
chegam a ir
O mais que há é paleio
de feira
Pois eu jogo os meus
planos
Diz que foram os
americanos
Naturalmente colocar a
bandeira
Levaram uma escada de
primeira
Porque houve quem os
visse pular
O que eles se houveram
de alembrar
Para o povo se convencer
Que eles digam o que
dizer
Lá ninguém pode chegar
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